O
processo decisório de algumas distribuidoras é algo que escapa minha
compreensão. Volta e meia lançam nos cinemas brasileiros filmes que foram um
enorme fracasso nos Estados Unidos ou que foram lançados direto em DVD, como o
caso do execrável Para o que Der e Vier,
enquanto isso ótimos filmes como o terror The
Babadook e este excelente Ex Machina:
Instinto Artificial (e ainda me colocam esse subtítulo bizarro), são
lançados aqui direto para vídeo apesar do sucesso que fizeram lá fora.
A
trama acompanha Caleb (Domhnall Gleeson), um programador que trabalha para a engine de busca BlueBook (um Google
futurista) e ganha um sorteio para passar uma semana na propriedade do recluso
bilionário Nathan (Oscar Isaac), o presidente da empresa. Ao chegar lá descobre
que não foi sorteado apenas para um retiro corporativo, mas para interagir com
o novo "produto" criado pelo bilionário, a robô Ava (Alicia Vikander),
para realizar um "Teste de Turing" (ou Jogo da Imitação, como trata o
filme sobre o matemático) de modo a determinar se sua inteligência artificial permite que
seja confundida com humana. Como era de se esperar, as coisas não são tão
simples quanto Caleb pensa e ele se vê em um perigoso jogo entre Nathan e Ava.
O
filme vai aos poucos construindo uma atmosfera de tensão, nos dando pequenos
indícios de que as coisas não são tão simples quanto Caleb pensa. Já na
primeira conversa com Nathan vemos como o bilionário parece sempre querer
deter as rédeas da conversa e rechaça de modo seco as tentativas do convidado
em sair dos tópicos propostos por seu anfitrião. Do mesmo modo, quando ficamos
sabendo que a chave recebida por Caleb só dá acesso a alguns cômodos, temos a
impressão de que talvez ele não seja exatamente um convidado, mas um
prisioneiro ali. O perigo latente daquele lugar é levemente percebido pelo
vidro trincado no cômodo em que interage com Ava pela primeira vez e os súbitos
blecautes que trancam as portas nos fazem inferir que nem tudo está tão sob
controle quanto Nathan tenta convencê-lo de que está.
Tudo
isso ocorre nos primeiros minutos de filme e obviamente não vou detalhar muito
o que acontece adiante para não estragar a experiência de ninguém. A partir
daí as tensões vão cuidadosamente escalando enquanto Caleb tenta analisar a
"humanidade" da robô Ava e dá suas impressões a Nathan. Conforme
esses três personagens interagem vamos indagando sobre o que realmente nos faz
humanos. A investigação sobre a essência da humanidade começa a pesar sobre
Caleb ao ponto que as fronteiras passam a se turvar e o protagonista passa a
duvidar da própria humanidade, como na impactante cena em que ele começa a
cortar o próprio corpo.
O
diretor e roteirista Alex Garland acerta ao evitar dar respostas definitivas
sobre as questões levantadas, permitindo que analisemos a situação por nós
mesmos e construamos nossas próprias opiniões a respeito. Evita também prestar
julgamento sobre os personagens e transformá-los em figuras maniqueístas que
apenas empobreceriam o debate aqui proposto. Basicamente, o filme tem êxito em
tudo que o pavoroso Chappie tentou
fazer e fracassou graças a seu olhar leviano e unidimensional. Ao invés disso, Ex Machina: Instinto Artificial investe
na criação de sujeitos complexos e ambíguos que nunca são facilmente
decifráveis, o que amplia o sentimento de apreensão e incerteza, nos fazendo
observar atentamente cada palavra, gesto e expressão desses indivíduos,
buscando os indícios e subtextos que nos permitam tentar compreender as
atitudes que se esforçam tanto para dissimular.
Chega
a ser assombroso que este seja o primeiro longa de Garland, já que ele conduz
esses embates com tanta segurança e precisão, uma grata surpresa em um ano que
nos brindou com outro trabalho primoroso de um diretor neófito em
longas-metragens no Whiplash: Em Busca da Perfeição de Damien Chazelle. O design
de produção também acerta na criação dos corredores metálicos cheios de
espelhos e divisórias de vidro, explicitando a caráter frio e enclausurado da
mansão de Nathan. A fotografia aproveita para ressaltar o contraste dos
ambientes brancos e cinzentos da casa com o verde vivo da vegetação ao redor ou
o azul das geleiras. Além, é claro, da qualidade dos efeitos visuais que criam
boa parte da robô Ava em uma mescla de efeitos práticos e de maquiagem com
computação gráfica.
Como
o filme é praticamente todo calcado nos diálogos entre os personagens, nada
disso valeria se o elenco não estivesse a altura das múltiplas camadas trazidas
pelo texto de Garland, mas a trinca principal de fato exibe grande habilidade,
fazendo cada conversa ser carregada de tensão, criando um sofisticado thriller psicológico habitado por
personagens extremamente inteligentes que tentam a todo momento superar a
esperteza um do outro. Como já falei o filme evita maniqueísmos, dando a cada
um seus próprios interesses e motivações, todas compreensíveis
e justificáveis (sob seus próprios pontos de vista) conferindo grande
complexidade a esses indivíduos e aos confrontos que se desenvolvem entre eles.
Oscar
Isaac consegue fazer de Nathan um sujeito simultaneamente simpático e
ameaçador, sendo que por mais que ele seja responsável pelos momentos mais
engraçados do longa (como a cena em que ele dança), percebemos que há algo
sombrio por trás de sua cortesia. Por sua vez Domhnall Gleeson traz uma medida
de ingenuidade e vulnerabilidade a Caleb, algo que claramente justifica a
escolha dele por Nathan, mas ao mesmo tempo ele é suficientemente atento e
engenhoso para não ficar alheio aos possíveis segredos que Nathan lhe omite.
Por fim temos a revelação que é a atriz sueca Alicia Vikander. Meu primeiro
contato com seu trabalho fora no horrendo O Sétimo Filho, o que tornou ainda mais surpreendente para mim a magnética
performance que exibiu aqui. Sua Ava é uma proverbial esfinge, enigmática e inescrutável,
sempre pendendo entre inocência e malícia, entre firmeza e doçura. Sua postura é
rígida, mas expressiva, de um modo que nos traz uma linguagem corporal que é ao
mesmo tempo robótica e dotada de humanidade. É exatamente por percebemos uma humanidade latente em meio a sua
conduta robótica que a personagem (e o filme) funciona tão bem.
Assim
sendo, Ex Machina: Instinto Artificial
é uma inteligente mistura de ficção científica, suspense e pitadas de terror,
que consegue entreter e nos instigar a reflexões complexas sobre a natureza
humana graças a sua direção precisa e elenco afiado.
Nota: 10/10
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