Depois
de muitos atrasos e adiamentos a ótima ficção científica Expresso do Amanhã do diretor Bong Joon-Ho (de O Hospedeiro) finalmente chegou aos
cinemas brasileiros, curiosamente estreando ao lado de outro filme
constantemente adiado, o terror Corrente do Mal. A essa altura eu acredito que muito de seu público em
potencial já tenha visto o filme por outros meios, mas, bem, antes tarde do que
nunca.
A
história se passa no futuro quando a humanidade acidentalmente congelou o
planeta em uma tentativa de combater o efeito estufa. O que restou da
humanidade agora habita um enorme trem, o Snowpiercer, que vive em constante
movimento ao redor do globo. Os recursos são escassos e divididos de forma
desigual, enquanto os ricos vivem nos espaços amplos da frente do trem, com
acesso aos melhores alimentos, todo o restante da população vive apertada nos
vagões traseiros comendo apenas as barras de proteína (e a revelação de como
são feitas torna tudo ainda mais desumano). Cansado de ser tratado como um
indivíduo inferior, Curtis (Chris Evans) decide bolar um plano para tomar o
controle do motor do trem, que fica na frente, e assim promover uma revolução
no lugar. Para isso contará com a ajuda do seu mentor Gilliam (John Hurt) e seu
amigo Edgar (Jamie Bell) e do engenheiro responsável pelo controle das portas,
preso pelas autoridades que controlam o trem.
O
diretor Bong Joon-Ho consegue manter um ritmo intenso à essa corrida desesperada
para chegar à ponta oposta do trem, sempre nos surpreendendo com novos
obstáculos e revelações sobre a estrutura social do trem. Chega inclusive a
lembrar o recente Mad Max: Estrada da Fúria pelo modo como consegue fazer uma narrativa aparentemente simplória
ser carregada de energia e significado. Inclusive, ao contrário do que a
premissa dá a entender, não é uma simples e maniqueísta disputa de pobres
contra ricos, já que o filme reconhece a complexidade da situação e mesmo o
vilão Wilfred levanta pontos válidos sobre a necessidade de mecanismos e
estruturas de controle social. Isso não perdoa o fato dele ser um fascista
cruel, mas o fato de percebemos que sua loucura parte de ideias racionais e
razoáveis ajuda a tornar o personagem mais verossímil e dar um tom mais ponderado e menos caricato ao
filme, diferente das simplificações grosseiras feitas, por exemplo nos filmes
de Neil Blomkamp como Elysium (2013)
ou Chappie.
As
cenas de ação não economizam na brutalidade e no sangue, deixando claras as consequências
daqueles embates e que cada confronto é uma insana luta pela vida. O fato de
que muitos personagens vão morrendo pelo caminho apenas amplia a sensação de
perigo e incerteza, já que vai ficando evidente para nós que a maioria deles
não irá sobreviver. Apenas uma sequência de ação decepciona, que é o ridículo
tiroteio envolvendo Curtis e um inimigo que atiram um no outro pelas janelas do
trem durante uma curva. Além de completamente estúpida, fora do tom mais sério
do resto do filme, ainda atrapalhada por uma computação gráfica pouco
convincente e pelo fato de que ela termina do jeito que começou e não agrega
nada à narrativa.
O
filme acerta também no design dos
ambientes, que são variados, mas ainda assim coesos, desde a "favela"
da parte de trás, passando por um aquário, boates e até mesmo uma sauna. O
problema, no entanto, fica pelo modo excessivamente expositivo através do qual
o filme nos apresenta este universo, sempre parando para explicar tudo ao invés
de permitir que ele se apresente organicamente para nós. Se Mad Max: Estrada da Fúria deixava que as
próprias ações dos personagens repercutissem os temas e ideias que fundamentam
o seu universo, como a objetificação da mulher, o controle de recursos naturais
como forma de dominação ou o uso do radicalismo religioso como ferramenta de
guerra, Expresso do Amanhã muitas
vezes mastiga aquilo que quer nos passar de modo óbvio, como o momento em que
alguém diz 'esse trem é o mundo",
deixando mais do clara a metáfora com a nossa sociedade.
Chris
Evans carrega com competência o filme, trazendo um personagem movido por boas
intenções, mas implacável e pragmático em suas ações ao ponto de deixar um
amigo morrer apenas para poder dominar a líder de seus inimigos e conforme
vamos conhecendo mais sobre ele vemos que há uma grande medida de vergonha e
arrependimento que move sua decisão em liderar a revolução. Já Tilda Swinton
aparece como uma mistura entre a Dolores Umbridge de Harry Potter e a estadista Margaret Thatcher com seu cabelo armado
e dentes proeminentes e personifica a faceta mais opressiva e radical do lugar,
se referindo ao líder Wilfred com um fervor quase que religioso. Jamie Bell
aparece pouco, mas traz um bem vindo otimismo a um cenário bastante sombrio.
O Expresso do Amanhã, portanto, acaba se revelando uma intensa e
provocativa ficção científica que nos faz pensar sobre sociedade e relações de
poder, embalada por brutais cenas de ação e um universo bem construído.
Nota:
8/10
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