A
trama conta a história de Val (Regina Casé) uma pernambucana que trabalha como
empregada em São Paulo e mora em um quartinho na casa de seus patrões. Os anos
passam e ela continua trabalhando e morando lá, tendo desenvolvido uma relação
praticamente maternal com o filho de seus patrões, Fabinho (Michel Joelsas). O
garoto tem mais proximidade com Val do que com os próprios pais e ela tem um
carinho genuíno por ele, porém, Val é completamente distante da própria filha,
Jéssica (Camila Márdila), que deixou em Pernambuco e raramente vê. A dinâmica
muda quando Jéssica vem para São Paulo prestar vestibular e acaba ficando junto
com a mãe na casa de seus patrões e a presença dela começa a testar as
"regras" entre patrão e empregada.
Apesar de ser considerada "quase da família", Val vive em um quartinho nos fundos da casa e fica confinada à cozinha a menos que seja chamada pelos patrões ou quando eles estão fora e ela vai limpar a casa, ela não tem uma jornada de trabalho com horas definidas e nem uma função definida na casa, servindo como cozinheira, faxineira e babá (quando o filho da patroa era pequeno). Val é constantemente enquadrada por frestas de portas e janelas, dando a impressão de aperto nos espaços que ela habita, inclusive há uma cena na qual ela está em seu quarto e a câmera a filma pelo lado de fora da janela gradeada, construindo uma imagem que mais soa como uma prisão do que uma habitação. Seus patrões, em especial a patroa, Bárbara (Karine Teles), a tratam com desdém, respondendo a ela de modo automático, como sequer tivessem ouvido aquilo que ela fala e mal olhando para ela, como se fosse alguém invisível, inferior ou indigno de atenção, apenas Fabinho tem uma relação de afeto com ela, inclusive indo até seu quarto quando não consegue dormir, relação aliás que ele não tem com os pais, que o tratam de modo frio e distante.
A
presença de Jéssica na casa vai deixando ainda mais clara a divisão entre
coisas "de patrão" e coisas "de empregado". Isso fica
evidente quando ela conta aos patrões da mãe a faculdade que deseja cursar e
estes reagem com olhares que parecem dizer "coitada, ela não vai
conseguir" e uma fala paternalista e condescendente que tenta lembrá-la de
que pertence a uma casta inferior e que aquele espaço não é para ela. As
tensões vão aumentando conforme Fabinho e seu pai (Lourenço Mutarelli) vão
dando mais abertura para a garota, deixando Bárbara cada vez mais indignada com
o tratamento "igual" dado à garota, como se fosse uma aberração que a
filha da empregada tivesse acesso às mesmas coisas que eles. Claro, Jéssica é
muitas vezes petulante e intransigente, muitas vezes deliberadamente provocando
a mãe e os patrões e desafiando a "ordem das coisas", mas,
convenhamos, que adolescente não questiona as normas ao seu redor ou se
comporta como se fosse mais importante do que os demais? Além disso, muitas de
suas provocações são também a única forma de resistência que ela tem, algo
claro no momento em que Bárbara lhe deseja um "boa sorte no
vestibular" carregado de malícia e desprezo e ela simplesmente dá as
costas sem responder, como que rejeitando a condescendência da mulher.
Já
Val parece dividida entre a lealdade aos patrões e à filha, muitas vezes
decidindo em favor dos primeiros, afastando ainda mais a filha com quem pouco
conviveu e as tensões entre elas ainda
aumentam conforme ela percebe o modo como Val trata Fabinho. Depois de passar
os últimos dez anos se transformando em uma paródia de si mesma, Regina Casé
volta aqui a demonstrar a grande atriz que é em uma performance doce, sensível
e que consegue com extrema habilidade equilibrar o drama e a comédia, muitas
vezes fazendo as duas coisas ao mesmo tempo. Um exemplo é a bela cena em que
ela molha os pés na piscina vazia dos patrões enquanto fala com a filha que
acabou de passar no vestibular, num belo símbolo do "esvaziamento"
das elites tradicionais bem como um sinal de mobilidade social das classes
menos favorecidas que começam (literal e metaforicamente) a ocupar os espaços "dos
patrões". A alegria e o choro contido de Casé nesse momento nos emociona
ao mesmo tempo que nos faz rir. Até mesmo o sotaque pernambucano da personagem,
que tinha um enorme potencial de dar errado e soar caricato, sai com bastante
naturalidade e sem exageros.
Que Horas Ela Volta? se revela, portanto, um singelo estudo de relações
de classe e relações afetivas, construindo com esmero e sensibilidade um retrato
de conflitos que se tornaram tão naturais que passamos a ignorar sua lógica
tacanha de exclusão e exploração.
Nota:
9/10
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