Antes
de mais nada: SPOILERS. Tratarei aqui sobre muito do que aconteceu nessa
segunda temporada, portanto, sim, muitos SPOILERS a seguir. Se você se
importa com esse tipo de coisa, melhor assistir os oito episódios e depois
voltar aqui. De todo modo, vamos ao que interessa.
Depois
da ótima primeira temporada, a série de antologia True Detective tinha uma tarefa difícil pela frente, criar uma nova
história e novos personagens que fossem tão interessantes quando Marty (Woody
Harrelson) e Rust (Matthew McConaughey) ao mesmo tempo em que alterava em
grande medida o tom da narrativa. A primeira temporada bebia diretamente na
fonte do mistério gótico, do horror lovercraftiano e especificamente dos contos
de Robert Chambers (que foi uma das influências de H.P Lovercraft) envolvendo
"o Rei de Amarelo". Já esta temporada parece mais diretamente ligada
à ficção hard boiled e ao noir, especialmente a partir dos
trabalhos de autores como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler e, assim como a primeira temporada
fez com Chambers, as referências pipocam a todo momento.
A
fictícia Vinci retratada na série, um enorme deserto industrial tomado por
corrupção transformado em cidade por megacorporações que visavam um governo e
legislação que os favorecessem, parece remeter diretamente à Personville do
romance Seara Vermelha de Hammett. As paisagens urbanas são cinzentas, tomadas por concreto, fumaça e sombras, mas não dão uma impressão de progresso e sim de desolação. Do
mesmo modo, a máscara negra de pássaro usada pelo assassino de Ben Caspere (em
especial o modo como ela é posicionada no banco do carro no primeiro episódio)
parece remeter diretamente à estátua de O
Falcão Maltês (1941). Os personagens são tipos endurecidos e atormentados por
erros do passado, complexos de culpa e toda a sorte de trauma.
O
crime aqui não é um fenômeno isolado, mas um verdadeiro "nó górdio"
de conspirações e joguetes escusos, como acontece em À Beira do Abismo (1946). Deslindar o fios que conectam esses múltiplos esquemas acaba levando
muito tempo, não apenas porque os crimes se misturam e se sobrepõem de um modo que
é difícil isolar as variáveis de cada um, como também porque os detetives que
os investigam sabem que estão envolvidos em algo muito grande, além de suas
capacidades individuais, e não sabem em quem confiar ou para quem levar suas
descobertas. Assim, a narrativa acaba sendo mais lenta, mais slow burn, como é tradicional neste tipo
de narrativa, e esse ritmo pode desagradar quem esperava algo com a mesma
cadência da primeira temporada.
Com
isso não quero dizer que "quem não gostou, não entendeu", já que esta
temporada teve sim alguns problemas na construção de seu mistério e dos
personagens, mas muita gente embarcou na temporada esperando algo no mesmo tom
e ritmo da primeira, sendo que a intenção do criador e roteirista Nic Pizzolatto era se distanciar
disso.
A
trama inicia a partir do misterioso assassinato do gestor público Ben Caspere
que é deixado no meio da estrada sem os olhos e gera um problema de jurisdição
que acaba unindo detetives de três departamentos diferentes, Ray Velcoro (Colin
Farrell), Ani Bezzerides (Rachel McAdams) e Paul Woodrugh (Taylor Kitsch). Além
deles há um quarto elemento interessado na resolução do crime, o gângster Frank
Semyon (Vince Vaughn), para quem Ray ocasionalmente trabalha, que estava
prestes a sair da ilegalidade com a compra de terrenos que seriam usados na
construção de um corredor ferroviário pelo governo. O problema é que os
contratos e dinheiro para compra e ambos sumiram com a morte do administrador,
o que o deixou sem o dinheiro e sem as propriedades.
Como
pudemos ver, temos praticamente quatro protagonistas, quase todos (a exceção de
Ray e Frank) distantes uns dos outros e com seus próprios núcleos e redes de
relacionamentos. Isso implica em gastar muito tempo para estabelecer e situar
cada um deles e seus microcosmos, resultando em um volume grande de informações
e explicações sendo despejadas incessantemente no espectador sem que ele seja
capaz de dar conta de tantos personagens e possíveis tramas, tornando os dois
primeiros episódios em narrativas truncadas, que parecem não querer seguir em
frente. O problema desse excesso de exposição inicial irá repercutir a frente
quando alguns arcos não conseguirem ressoar simplesmente porque sequer
lembrávamos da existência de certos personagens e não nos importávamos com
eles.
Um
exemplo disso é quando Stan, um dos principais capangas de Frank, é assassinado
de modo similar a Caspere e planta no gângster a ideia de que pode estar sendo
traído por alguém em suas fileiras. O problema é que esse desenvolvimento falha
em impactar porque não fazíamos a menor ideia de quem era Stan, já que apenas o
vimos por poucos minutos e não sabíamos nada a seu respeito. Por causa disso, todo
esse arco, inclusive a cena de Frank com o filho dele, que deveria ter um certo
impacto emocional, não funciona.
O
mesmo acontece com Paul que, ao contrário dos outros três personagens, aparentemente não possui nenhuma ligação pessoal com o crime ou as figuras que
o gravitam. Assim, todo o investimento nele e sua recusa em aceitar a própria
homossexualidade, que é até bem construído, parece deslocado da narrativa principal, embora todo seu
tormento por viver como uma sombra incompleta de si mesmo seja coerente com o
tom noir da série. Na verdade, o
único elemento que o liga ao mistério principal (e que só aparece nos últimos
episódios) é justamente aquele que é menos trabalhado, que é seu envolvimento
passado com um grupo militar privado durante sua época de soldado, na qual fica
subentendido que ele cometeu algo de muito grave.
Já
que falei em personagens atormentados, preciso me deter um pouco sobre os
outros dois detetives. Ani Bezzerides se apresenta como alguém emocionalmente
fechada, que usa sua aparente agressividade para manter os outros distantes,
seus problemas emocionais parecem vir de uma relação problemática com o pai e a
comunidade alternativa em que foi criada e conforme a narrativa avança, vamos
descobrindo indícios de abuso que justificam a postura sempre defensiva que a
personagem tem.
Ray Velcoro não é apenas uma sombra de si mesmo, mas um zumbi, uma alma que foi condenada a vagar pelo mundo como punição por seus erros. Ele não é, no entanto, o seu típico policial corrupto, já que sua motivação por se envolver com Frank não foi ganância, mas um senso de gratidão por este ter lhe ajudado a se vingar do homem que estuprou sua mulher. Lógico que isso não foi o bastante para salvar seu casamento e Ray se afundou ainda mais em vícios e crime. Farrell o constrói como um cão vira-lata, solitário e desesperado por uma medida mínima de afeto (em especial do seu filho, que tragicamente pode ser do estuprador e não dele), mas que foi tão maltratado pela vida que rechaça qualquer negativa com uma desmedida agressividade.
Ray Velcoro não é apenas uma sombra de si mesmo, mas um zumbi, uma alma que foi condenada a vagar pelo mundo como punição por seus erros. Ele não é, no entanto, o seu típico policial corrupto, já que sua motivação por se envolver com Frank não foi ganância, mas um senso de gratidão por este ter lhe ajudado a se vingar do homem que estuprou sua mulher. Lógico que isso não foi o bastante para salvar seu casamento e Ray se afundou ainda mais em vícios e crime. Farrell o constrói como um cão vira-lata, solitário e desesperado por uma medida mínima de afeto (em especial do seu filho, que tragicamente pode ser do estuprador e não dele), mas que foi tão maltratado pela vida que rechaça qualquer negativa com uma desmedida agressividade.
E
o fato que descobrimos mais a frente que ele matou o homem errado, destruindo
seu casamento e se corrompendo a troco de nada, apenas amplia essa dimensão
trágica e a percepção dele como alguém fadado a fracassar. Algo que fica claro
no seu desfecho, quando ele tenta mandar uma última mensagem ao filho, mas o upload falha em uma cena de partir o
coração enquanto ele ruma para próprio extermínio sem sequer ter o conforto de
saber que suas últimas palavras de amor e carinho seriam ouvidas.
As
cenas em que ele interage com outros personagens em um bar escuro e decrépito
no qual uma cantora (Lera Lynn) parece sempre trazer canções que exprimem
exatamente o que ele está sentindo dão um caráter quase que
surrealista à narrativa, em especial na cena que divide com o pai depois de ser
baleado. Isso, claro, não é uma crítica ou demérito, já que True Detective nunca mirou no realismo
nem nessa nem na temporada anterior, na verdade é até satisfatório quando a
série abraça sem medo a sua própria loucura.
Afinal
as imagens produzidas pela série mais parecem um sonho ou delírio febril
produzido pelas mentes torpes e maltratadas de seus personagens, resultando numa espécie de "realidade expandida" que mostra uma versão aumentada
da realidade a partir da iconografia da narrativa policial. Isso não se reflete
apenas nas imagens, mas nos diálogos, afinal, ninguém fala como Rust Cohle, Ray
ou Frank, mas também ninguém fala como Sherlock Holmes, Sam Spade, Philip
Marlowe ou mesmo Veronica Mars. O detetive iconoclasta e idiossincrático faz
parte da poética do gênero, algo que faz parte do zeitgeist há mais de um século e não há nada de errado em remeter a
essa tradição narrativa.
A
investigação, apesar de relativamente lenta, vai aos poucos dando indícios de
que o assassinato de Caspere não é tão simples quanto parece, conforme eles
descobrem que ele estava envolvido em diversos esquemas, desde tráfico de
pessoas para fins de prostituição, promoção de orgias para os poderosos (com
direito a gravações para fins de chantagem) até o deliberado envenenamento de
solo para viabilizar o tal corredor ferroviário, passando por um suspeito
assalto a joalheria décadas atrás que deixou duas crianças órfãs. Cada nova
descoberta parece cavar um buraco ainda mais fundo e a sensação de que não há
fim para o crime, a corrupção e depravação com a qual os personagens estavam
envolvidos, bem como uma ampliação cada vez maior da lista de suspeitos, já que
praticamente todas as autoridades que aparecem na trama tem envolvimento com os
delitos do gestor público.
Mesmo
com o ritmo mais devagar há um manejo bastante hábil do jogo pista/recompensa,
já que praticamente toda informação, mesmo que inicialmente marginal, acaba
mais para frente se revelando importante e necessária para a resolução do crime
e, deste modo, sentimos que nossa atenção valeu a pena. Tudo isso vai aos
poucos aumentando a tensão e paranoia dos personagens (e consequentemente
nossa), bem como a impressão de que ninguém quer que eles realmente decifrem
tudo. Na verdade, a contratação do detetive pelos responsáveis apenas para
turvar ainda mais as águas é também um expediente comum no noir, acontece em O Falcão
Maltês (1941), quando a assassina do parceiro de Spade o contrata, em Chinatown (1974), quando uma atriz
contratada pelo conspirador contrata Jack Gittes para que ele arme um flagra, e
até mesmo no cartoon-noir Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988), no
qual o chefe de estúdio e co-conspirador contrata Ed Valiant para armar um
flagra de modo semelhante ao de Chinatown.
Conforme
descem nessa sombria toca de coelho, em especial a partir do quinto episódio,
os detetives vão descobrindo que, apesar de tudo retornar a Caspere e
envolvê-lo, os crimes não estão todos relacionados e que os envolvidos são tão
numerosos e poderosos que mesmo com todas as descobertas e provas serão
incapazes de atingi-los. O sentimento vai ampliando conforme a série vai
chegando nos seus dois últimos episódios e quando a última tentativa deles em
incriminar os envolvidos é frustrada no início do season finale, tudo se transforma em uma tensa corrida por
sobrevivência, na qual eles tentarão obter o mínimo de retribuição que conseguirem
antes de fugir. A cena do gravador escapulindo das mãos de Ray para ser
pisoteada pela multidão na cena da estação de trem simboliza exatamente como eles estão
lidando com forças tão superiores e com uma ordem tão grande de malícia,
ganância e pecado que mesmo o acaso, a sorte e o destino estão contra eles.
Tudo isso leva a clímax incrivelmente tenso no qual temos a sensação de que
nenhum deles pode sair vivo.
Ao
final, mesmo com a clara resolução do crime e das pistas para apoiar suas
conclusões, não há nada fazer senão fugir ou morrer enquanto os poderosos
por trás de tudo isso conseguem exatamente aquilo que querem. Seus segredos são
soterrados, um novo prefeito é eleito em Vinci, o corredor ferroviário começa a
ser construído. O crime, portanto, é um elemento estrutural daquela sociedade,
é o crime que permite que os poderosos alcancem e mantenham o seu poder, é
através de roubo, morte, chantagem, traição e perversão que fortunas são
construídas e mesmo que compreendamos tudo isso, não há muito que possa ser
feito, nos trazendo mais uma vez ao fatalismo típico do noir.
Esse
fatalismo, aliás, é traduzido na escolha precisa da canção tema desta
temporada, Nevermind, de Leonard
Cohen. Aliás, os versos usados na abertura mudam a cada episódio, fazendo as
letras sempre reverberarem (e nos prepararem) para o que será visto a seguir. Versos
como "there's truth that lives/ And
truth that dies/ I don't know wich/ So nevermind" reforçam o fatalismo
de que em uma rede tão grande de intrigas é difícil conhecer a verdade, então
melhor deixar para lá. O trecho "The
war was lost/ The treaty signed/ I was not caught/ I crossed the line"
parece antever que os personagens não irão vencer e precisarão fugir. Isso
apenas demonstra o cuidado que o supervisor musical T-Bone Burnett tem ao
selecionar as composições (originais ou não) que entrarão na série.
Mas
há um personagem que ainda não abordei aqui. Se prestaram atenção, não falei
nada sobre Frank. Provavelmente o personagem menos interessante dos quatro por
não conseguir sair do lugar comum do "mafioso que quer virar honesto",
além da típica preocupação com seu legado. No entanto, tenho a sensação que
Frank está aqui mais para provar um ponto do que para ser um sujeito plenamente
realizado. Este não é o de que "o crime não compensa", já que o fim
diz que, sim, o crime compensa, desde que você já tenha dinheiro, poder e
influência.
O
ponto que Frank serve para provar é o ideal de um pleno liberalismo econômico
meritocrático que traz em si a promessa de que um homem é capaz de ascender com
seu próprio esforço e trabalho (o mito do self
made man) não passa de uma cortina de fumaça, um engodo formatado pelos
detentores do poder para manter todos os outros ocupados. Afinal, Frank
trabalhou (de forma ilegal, mas praticamente todos os personagens atuam na
ilegalidade), juntou seu dinheiro, fez tudo que os poderosos lhe pediram.No entanto, quando chegou a hora de ser recompensado e finalmente admitido nesta alta "casta"
da sociedade, os mesmos poderosos que lhe prometeram fortuna puxaram seu tapete
e o recolocaram em "seu devido lugar" como gângster, traficante e
cafetão, deixando claro que o poder e a fortuna, não são acessíveis a qualquer
um. Tanto, que é justamente o orgulho de Frank em "não aceitar seu
lugar" que o leva à ruína em sua última cena.
Aos
que não detêm o poder (ou que conhecem seu funcionamento), resta apenas a peleja
brutal pela ínfima esperança de um lugar ao sol ou a fatalista realização de
que isso é inalcançável, sendo melhor se
manter distante ou alheio a isso. Esse fatalismo fica evidente na ambígua cena
final em que Ani dá todas as suas provas a um repórter antes de desaparecer
para sempre. A fala de Ani de que "merecemos
um mundo melhor" ecoa uma fala de Ray no início da temporada de que "temos o mundo que merecemos",
pois para existir um mundo melhor, é preciso pessoas que estejam a altura
disso. A resposta a estes questionamentos é inteligentemente deixada em aberto,
afinal, se há ou não um possibilidade de reverter tudo isso, se é possível
punir ou não essas pessoas, é uma decisão de cada um.
Mais do que a negação de um projeto de nação, o fim também parece apontar para o fracasso, simbólico e literal, deste tipo de herói hard boiled machão, já que todos os homem fracassam, deixando às mulheres (Ani, Jordan, Emily) a responsabilidade de dar prosseguimento a essa busca por "um mundo melhor" (ou não, depende de como enxergamos esse desfecho).
Esta
segunda temporada de True Detective teve
sua parcela de tropeços e claramente não está no mesmo patamar da temporada
anterior, mas é um competente conto sobre as forças que manejam nossas
estruturas de poder e como é ganância que movem e moldam as nações, bem como
uma apaixonada celebração da iconografia do noir.
Nota: 8/10
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