A vingança é um tema caro ao diretor Quentin Tarantino, praticamente em todos os seus filmes há um personagem engajado numa busca por vingança. O fascínio pelo tema é compreensível, afinal vingança consiste em reparar um erro ou uma injustiça feita com alguém de modo a devolver o equilíbrio às coisas. Neste Django Livre o tema da vingança parece mais do que adequado, já que se trata do levante de um escravo contra seus escravizadores e duvido que haja uma situação social tão unanimemente considerada como maligna quanto a escravidão.
No filme, dois anos antes da Guerra de Secessão americana que pôs fim à escravidão no país, Django (Jamie Foxx) é um escravo libertado pelo caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz) para ajuda-lo a encontrar um grupo de bandidos que apenas Django conhece o rosto. Ao mesmo tempo, Django deseja reencontrar sua esposa, Brunhilde (Kerry Washington), que foi vendida ao inescrupuloso fazendeiro Calvin Candie (Leonardo DiCaprio).
Tarantino, entretanto, não está aqui para produzir um longo tratado antropológico acerca das mazelas da escravidão, ele deseja produzir alguma sensação de reparação, mas o faz de seu próprio jeito, com diálogos irônicos e verborrágicos, além de, é claro, uma dose cavalar de ultraviolência. Se muitos podem criticar o filme por não adentrar em todas as implicações da escravidão, é impossível negar o efeito catártico produzido pelas imagens de Django açoitando violentamente seu feitor.
O diretor parece querer também reparar as representações racistas produzidas pelo cinema americano ao longo de sua trajetória, isso fica claro na cena em que um grupo de racistas encapuzados marcha a cavalo em direção à carruagem de Django e Schultz, lembrando bastante a cavalgada dos membros da Ku Klux Klan em O Nascimento de Uma Nação (1915) de D. W. Griffith (na época o filme foi acusado de incitar as atividades do Klan e usado pelo mesmo como ferramenta de recrutamento). A diferença é que aqui os racistas são explodidos e baleados pelos dois caça recompensas. É como se Tarantino desejasse não apenas purgar o sentimento de injustiça racial através da vingança de Django, mas também purgar as representações questionáveis e preconceituosas promovidas pelo cinema.
A importância e a atemporalidade das representações ficcionais é outro tema tratado pelo filme, já que é através de uma lenda nórdica, a da valquíria Brunhilde, mesmo nome da esposa de Django, que Schultz concorda em ajudar Django em sua cruzada. É interessante notar que enquanto o alemão conta a história, o enquadramento o deixa à direita da tela para que possamos ver as sombras que seus gestos projetam na parede, resgatando assim uma das formas mais primordiais da representação audiovisual, como se ela sempre tivesse feito parte das sociedades humanas e sempre tivéssemos recorrido aos diferentes gêneros de representação para disseminar valores, ideias e informações. As conversas entre Schultz e Django sobre a necessidade de construir personagens para si mesmos ajudam a reforçar essa noção das interferências constantes de ficção na realidade e vice-versa.
Por falar em personagens, Django Livre traz figuras bastante interessantes e genuinamente tarantinescas do falastrão King Schultz (que lembra um pouco o que Waltz fez em Bastardos Inglórios) ao excêntrico e ignorante Candie, com seus maneirismos excêntricos e um largo sorriso que deixa a mostra seus dentes podres. A música é outro ponto forte da obra, misturando temas que lembram os compostos por Ennio Morricone para os spaghetti westerns de Sergio Leone, passando por ritmos mais ligados à cultura negra americana como hip hop e soul.
O único problema do filme é que em muitos momentos Tarantino se apresenta como demasiadamente Tarantino, quase como uma paródia de si mesmo, entregando-se a seus excessos verborrágicos e referências a diferentes gêneros (em especial ao faroeste e ao blaxploitation) e deixando a narrativa em segundo plano e inchando o filme de forma desnecessária. Isso é notado principalmente no segundo ato do filme (do momento em que conhecem Candie ao confronto final) que se estende mais do que deveria e não acrescenta nada ao desenvolvimento dos personagens. A sensação é que o filme, no alto de seus 165 minutos, poderia ter meia hora a menos. Tenho certeza que se Sally Menke, a montadora de todos os outros filmes do Tarantino, ainda estivesse viva, certamente ela teria eliminado muito do que há de desnecessário da mesma forma como fizera em Bastardos Inglórios e o corte final do filme seria muito mais enxuto.
Ainda assim, Django Livre é um filme muito bom no qual Tarantino continua exibir um grande domínio técnico da linguagem do cinema, mas o diretor precisa tomar cuidado para não embarcar em egotrips muito profundas, para que suas divagações e os diálogos verborrágicos nonsense tornem-se um fim em si mesmo ao invés de servir a uma boa narrativa.
Nota: 8/10
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