Há um chavão na crítica de que quando um texto foca seus elogios na iluminação de um filme, provavelmente a obra é uma porcaria e o redator está apenas tentando lhe conferir alguma dignidade. Não é o caso deste Em Transe, mas a verdade é que os componentes estéticos do filme são seu principal mérito já que a narrativa é bastante frouxa e problemática.
O virtuosismo visual do diretor Danny Boyle não é novidade para aqueles habituados com sua obra, mesmo filmes considerados como “menores” como A Praia (2000) e Sunshine: Alerta Solar (2007) constituem composições plásticas e experiências sensoriais incrivelmente interessantes.
Em Transe conta a história de Simon (James McAvoy), um leiloeiro que ajuda um grupo de assaltantes a roubar um valioso quadro de sua casa de leilões para poder pagar dívidas de jogo. O problema é que Simon esconde o quadro e durante o assalto é atingido na cabeça esquecendo onde guardou a valiosa pintura. O líder dos assaltantes, Franck (Vincent Cassel), resolve recorrer a uma terapia de hipnose para fazer Simon recobrar a memória e para isso contrata a terapeuta Elizabeth Lamb (Rosario Dawson). A partir daí começa uma viagem hipnótica pelo subconsciente, onde nada é exatamente o que parece.
O filme usa diferentes recursos da linguagem cinematográfica para dar origem ao universo idílico de delírio hipnótico vivenciado pelos personagens. A iluminação incide forte e exagerada sobre os atores, distorcendo seus contornos e formas conferindo esse aspecto de algo fruto da nossa mente. Além disso, usa um excesso de filtros e superfícies espelhadas para gerar reflexos e flares de luz que dão às imagens uma sensação de hiper-realismo. A isso se soma o uso de uma paleta dominada por cores fortes e tons de neon que contribuem para essa impressão de estarmos diante de uma realidade delirante e amplificada.
A ideia de delírio é também construída a partir do posicionamento e movimentação de câmera que investe em enquadramentos tortos e planos inclinados. A música contribui para a sensação de transe ao investir em musicas techno que se baseia em vigorosas repetições sonoras, quase como um mantra.
É uma pena, portanto, que a narrativa do filme se mostre tão insatisfatória, tentando complicar demais uma premissa demasiadamente simples e investindo em reviravoltas despropositadas na tentativa de soar como algo mais esperto do que realmente é. A resolução da trama já se desenha desde o início, já no primeiro encontro entre Simon e Elizabeth fica claro que ela o conhece, mesmo que ele não a reconheça. Se esse indício é sutil demais o da cena posterior ao primeiro encontro dos dois não é: Elizabeth procura sobre Simon na internet e chora ao ler sobre ele e o assalto. Fica claro nesse momento que a resolução da trama perpassa por descobrir mais sobre a relação entre dois.
Entretanto não é isso que o filme faz. A narrativa passa a ignorar completamente esses indícios e investe em conflitos e traições entre os membros da gangue de Franck, mas como já sabemos que isso nada tem a ver com a resolução da trama e que a chave do mistério reside em Elizabeth, acompanhar todas essas idas e vindas é bastante tedioso e desinteressante. Além disso, o filme muda a todo momento as informações que temos sobre o que aconteceu de fato com Simon após o assalto. O início do filme parece deixar claro que ele desmaia após ser atingido na cabeça, depois sabemos que ele não desmaiou e que caminhou até a rua e foi atropelado, depois que ele passou algumas horas (como ele fez isso com um volumoso coágulo no crânio escapa meu entendimento). Essa manipulação nas informações nos obriga a readaptarmos nossas expectativas e sem essas expectativas bem formadas fica difícil embarcar no suspense.
É apenas quando o filme está próximo ao fim que o filme retorna à relação entre Elizabeth e Simon, vomitando de vez toda a resolução através de uma explicação acelerada e expositiva que mais parece algo retirado de um episódio do Scooby Doo. O filme ainda peca por tentar deixar um final aberto que considera diferentes possibilidades de resolução, mas qualquer uma que se leve em conta revela-se inverossímil e incoerente com tudo que o filme desenvolveu até então.
Uma pena, pois não apenas não faz jus ao trabalho estético feito até então, mas também não faz jus ao casal de protagonistas. Rosario Dawson domina cada segundo que está em cena exibindo uma dualidade cheia de nuances entre calculismo e vulnerabilidade que lembra as melhores femme fatales dos filmes noir, sua presença em cena é, com o perdão do trocadilho, hipnótica. Já McAvoy constrói um personagem que esconde uma grande dose de sadismo e agressividade sob seu comportamento amedrontado e é bem cuidadoso como o ator vai aos poucos nos permitindo ver esse lado mais sombrio do personagem.
Em Transe mostra que Danny Boyle ainda exibe um grande domínio estético dos meios cinematográficos, mas se quer voltar a emplacar obras tão memoráveis com Trainspotting (1996) e Extermínio (2002) é preciso ter cuidado também com os aspectos narrativos da obra e escolher roteiros melhores.
Nota: 6/10
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