Dirigido pelo crítico e cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho,O Som ao Redor nos mostra o cotidiano de um bairro de classe média de Recife e como as pessoas vivem em um estado constante de tensão e medo trancafiados em seus condomínios murados e janelas gradeadas. A chegada ao bairro de um grupo de segurança particular (mas que é quase uma milícia) encabeçado pelo misterioso Clodoaldo (Irandhir Santos) promete trazer mais tranquilidade, mas também traz alguns conflitos.
Como o próprio título já adianta, o som é um componente importante para a obra, recorrendo quase que o tempo todo a ruídos, rumores e sons ambientes para ilustrar que há toda uma cidade, toda uma vida para além dos prédios gradeados e condomínios fechados, ouvimos durante todo o filme sons de carros passando, crianças brincando, pássaros cantando, cachorros latindo e toda a sorte de elementos. Ouvimos, mas nunca vemos, as pessoas estão muito presas em suas pequenas casas e apartamentos que não saem para experimentar aquilo que há lá fora. A música também contribui para essa atmosfera de clausura com pulsações graves que dão o tom de uma tensão e uma ameaça constante, quase como um filme de terror, mesmo que nada efetivamente aconteça. Alguns podem dizer que este é um truque barato ou um engodo, mas casa com a ideia de querer transmitir o medo constante das populações urbanas, que mesmo sem verem ou serem vítimas diretas da violência urbana, ainda assim sentem uma constante e perene sensação de insegurança e que algo ruim pode acontecer a qualquer instante.
O uso da câmera também contribui para essa sensação de ameaça e clausura. O diretor constantemente a posiciona atrás de seus atores, acompanhando seus movimentos conforme transitam pelos espaços, construindo imagens que dão a impressão de algo espreitando aqueles sujeitos. O filme investe também em planos estáticos que contribui para que percebamos a pequenez dos espaços nos quais vivem as pessoas.
A narrativa transcorre de maneira difusa, acompanhando o dia de um grande grupo de pessoas que mora no mesmo bairro e as tentativas das pessoas de interagirem nestes ambientes fechados. Assim, vemos crianças andando de patins em círculos dentro das garagens dos prédios, adolescentes se beijam entre corredores apertados, donas de casa observam a cidade de suas varandas e um garoto tenta jogar bola na rua, sendo frustrado de diferentes maneiras a cada tentativa, não lhe restando escolha a não ser voltar para casa e jogar videogame. Não há um protagonista para guiar a progressão do filme e isso, assim como o ritmo lento, pode afastar algumas pessoas que podem inicialmente considerar que o filme se limita a jogar uma série de elementos soltos acerca da vida nas grandes cidades.
As fotos em preto e branco que vemos no início do filme podem remeter a um destes elementos despropositados para um olhar mais desatento, entretanto elas tem uma ligação essencial com a temática do filme e irão reverberar com força ao final do longa. Nas imagens vemos antigas fazendas que remontam ao passado agrícola do país quando senhores de terras governavam livres e impunham sua autoridade através da força trabalhadores escravos cuidavam da plantação e da colheita, remetendo a um tempo em que a sociedade brasileira era dividida entre casa grande e senzala.
O Brasil parece ter mudado desde então, mas o filme nos mostra que essa ordem social, de certa forma, permanece. Vemos isso na figura de Francisco (Waldemar José Solha) que é dono de quase todos os imóveis da rua e delega aos seus filhos e netos a administração das propriedades, além de possuir uma propriedade rural que outrora foi uma grande fazenda. Francisco é praticamente um latifundiário urbano, controlando as propriedades e usos do espaço, tanto que ao começar seu empreendimento é a Francisco que Clodoaldo vem pedir a “benção”. O filme também nos revela como ainda mantemos relações de trabalho incrivelmente servis, que remetem às práticas de outrora.
As trabalhadoras domésticas são enquadradas à distância, através de frestas de portas entreabertas enquanto trabalham na cozinha, sob o olhar de seus filhos, ou trocam de roupa na área de serviço, quase como estivéssemos vendo alguém cativo, que deveria ficar invisível, escondido nas cozinhas, lavanderias e áreas de serviço, espaços que são herdeiros funcionais das antigas senzalas e que mostram como nosso processo civilizatório ao longo de séculos pouco fez para promover mudanças na ordem social e na exclusão que existia em nossa sociedade. Vemos isso de modo mais claro no modo como as patrões tratam os empregados, como na cena em que a dona de casa Bia (Maeve Jinkings) manda sua emprega passar como se fosse um cachorro depois que esta coloca um eletrodoméstico na tomada errada, queimando o aparelho. A existência da desigualdade fica patente também na tomada em temos um zoom à distância de um conjunto de barracos espremido entre vários prédios residenciais enormes e a imagem da impressão de que os prédios estão sufocando e apertando essas edificações humildes, demonstrando mais uma vez como nossas cidades se organizam e se desenvolvem de modo a promover a exclusão e a marginalização.
É interessante como o filme vai adotando uma abordagem mais fantasiosa, quase que surrealista, em seu terço final usando esses recursos para mostrar os temores internos dos personagens como na cena em que João (Gustavo Jahn) sonha estar se banhando em uma cachoeira de sangue, mostrando o temor de que alguma violência recaia sobre ele, do mesmo modo vemos o pesadelo de uma garota no qual várias pessoas invadem sua casa, representando um temor “pequeno-burguês” de que um dia os excluídos e marginalizados um dia possam se insurgir e tomar tudo. Também é bela a tomada na qual um personagem olha para a rua e a vê como era na sua infância, revelando que os espaços abertos e o verde foram eliminados pelos prédios e muros.
A difusão e a grande abertura da narrativa são esclarecidas nos últimos minutos do filme quando Clodoaldo expõe a Francisco suas motivações por estar naquela rua e apesar de falar pouco, diz muito sobre o tacanho processo de formação das nossas cidades, desde época das grandes propriedades rurais até os dias de hoje e como estes são responsáveis para um afastamento cada vez maior das populações menos favorecidas para periferia e como esse processo de exclusão, segregação, alienação e abandono é, de algum modo, conectado à violência urbana que experimentamos e tanto tememos. As consequências disso, como mostra o final, são brutais e essa espiral de exclusão, violência e medo se retroalimenta, se fortalece e se mantem.
O Som ao Redor é um filme maduro e inteligente, com domínio sobre o uso da linguagem cinematográfica e que apresenta um olhar crítico sobre a organização das nossas cidades e os problemas nela contidos sem recorrer a demagogias ou soluções fáceis, traçando um retrato complexo da nossa vida urbana e confiando na capacidade crítica de que seu público conseguirá confrontar o material com suas próprias experiências e extrair suas conclusões acerca das questões apresentadas. É um filme poderoso, polissêmico e carregado de símbolos e significados de um modo que seria impossível dar conta neste pequeno e breve texto e é bem possível que outros consigam produzir outras interpretações complementares e talvez até antagônicas a estas aqui apresentadas. Pode parecer um pouco lento, difuso e até mesmo moroso, mas isso de modo algum diminui a força de suas ideias e de seus pontos de vista.
Nota: 10/10
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