Imaginem
se o diretor Quentin Tarantino decidisse transformar a tensa cena da taverna do
seu Bastardos Inglórios (2009) em um
longa metragem de quase três horas, misturando-a com algumas ideias de Cães de Aluguel (1992). É mais ou menos
isso que acontece neste ótimo Os Oito
Odiados que se passa quase inteiramente dentro de um hospedaria durante uma
nevasca com um grupo de estranhos no qual ninguém é o que diz ser.
Na
trama, que se passa alguns anos depois da Guerra de Secessão dos Estados
Unidos, o caçador de recompensas Marquis Warren (Samuel L. Jackson) se vê em
meio a uma nevasca enquanto transporta os corpos dos seus três últimos alvos.
Sem alternativa, acaba pegando carona na carruagem do também caça recompensas
John Ruth (Kurt Russell), que está transportando a fugitiva Daisy Domergue
(Jennifer Jason Leigh). A neve, no entanto, os obriga a parar em uma hospedaria
na qual um grupo de estranhos também se abrigou. Confinados na casa por causa
do mal tempo, o grupo vai aos poucos desconfiando das intenções uns dos outros
e conforme se conhecem melhor vai aumentando a sensação de que algo muito
errado está para acontecer na pequena hospedaria.
Apesar
de ser um filme preso a praticamente uma única locação e cuja trama se desenvolve
principalmente através de diálogos, Os
Oito Odiados jamais soa enfadonho ou cansativo e suas quase três horas de
duração passam sem que se sinta. Os diálogos contêm a verborragia e senso de
humor ácido que estamos acostumados a esperar do texto de Tarantino e
contribuem para tornar únicos e exóticos cada um dos personagens, que também
são beneficiados pelo cuidado das interpretações de seus atores. Se inicialmente
o riso de Daisy ao ser golpeada por John parece indicar um tipo de prazer
masoquista, conforme o filme avança vemos que na verdade é uma espécie de
satisfação antecipada pela vingança que provavelmente se seguirá. Afinal, não
seria um filme de Tarantino se toda a conversa inevitavelmente descambasse para
um brutal espetáculo de ultraviolência na qual é difícil determinar que irá
viver ou morrer.
O
filme, no entanto, não é apenas um exercício de crueldade, uma vez que o
diretor usa o contexto de fim da Guerra de Secessão (a própria hospedaria é
dividida entre norte e sul em dado momento) para expor preconceitos enraizados
na sociedade dos Estados Unidos, conflitos de classe e raça, bem como uma
crítica ao modo como o Estado impõe a lei, que parece sempre estimular a
violência e a predominância da "lei do mais forte". São os mesmos
temas e ideias que já tinham sido tratados em Django Livre, o que acaba dando uma sensação de deja vu embora suas considerações continuem
relevantes assim como as discussões que elas trazem. Muito disso é incorporado
no personagem de Samuel L. Jackson, um homem negro que caminha sozinho pelos
ermos do estado do Wyoming, constantemente subestimado por sua cor de pele e
que usa uma correspondência trocada com o falecido presidente Abraham Lincoln
como uma espécie de garantia de civilidade.
A
carta é obviamente uma metáfora para a necessidade de reconhecimento de
igualdade e do preconceito enraizado que norteia as relações sociais, nas quais
se naturaliza tratar alguém como Warren como naturalmente inferior e precisasse
da chancela de alguém "com autoridade" para ser tratado como cidadão.
Do mesmo modo, assim como fez em Django Livre (lembrem da cena dos racistas encapuzados) as condutas
preconceituosas e ofensas racistas são sempre tratadas em tom de exagero e
absurdo, como se ele quisesse expor ao ridículo o comportamento racista,
visando demonstrar o quanto essas pessoas são estúpidas, irracionais e
patéticas. Assim como ele matou o nazismo no cinema (literal e metaforicamente)
em Bastardos Inglórios, Tarantino
parece aqui querer derrubar o racismo através do escárnio, nos expondo de tal
modo à truculência e burrice ao ponto que fiquemos exaustos com tudo aquilo e
não haja outra escolha senão desprezar o discurso odioso dessas figuras.
O
diretor ainda se beneficia de um bom trabalho de câmera, cujas panorâmicas permitem
que vejamos cada pedacinho das imensidão hostil das tundras congeladas do velho
oeste, nas cenas internas o amplo escopo das tomadas se mantém deixando que
conheçamos cada detalhe da casa em que os personagens estão confinados. Inclusive
podemos perceber o que outros personagens estão fazendo ao fundo enquanto a
cena se concentra em um ou dois deles, algo que certamente exigiu muito
planejamento para organizar este amplo espaço de encenação. O filme derrapa
apenas no uso da narração em off que
quase sempre soa redundante, acrescentando pouco ao desenvolvimento da trama
conforme se limita a descrever algo que já estamos vendo na tela.
Assim
sendo, Os Oitos Odiados é mais um
trabalho intenso, instigante e provocador de Quentin Tarantino, mesmo que o
diretor se mantenha em algo que já lhe é familiar.
Nota: 8/10
Trailer:
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