Depois de ter sido introduzido na
primeira temporada de Jessica Jones,
agora o personagem Luke Cage ganha sua própria série seguindo a parceria da
Marvel com a Netflix. A série de Jessica Jones e as duas temporadas de Demolidor foram amplamente elogiadas,
assim havia muita expectativa para que esta primeira temporada de Luke Cage mantivesse o alto padrão
estabelecido dentro do universo Marvel trabalhado pela Netflix e a série
entrega o que promete. Possíveis SPOILERS a seguir.
A trama começa meses depois dos
eventos vistos em Jessica Jones, com
Luke se mudando para o Harlem e tentando manter-se discreto depois de ter sido
obrigado a usar seus poderes para enfrentar Kilgrave. Suas tentativas de se
manter longe de problemas caem por terra quando a barbearia onde trabalha se vê
no caminho do gângster Cottonmouth (Mahershala Ali, da série House of Cards) depois que um dos
garotos que trabalha para Pop (Frankie Faison) rouba dinheiro do mafioso. Com
as pessoas de quem gosta ameaçadas, Cage se vê obrigado a agir.
A temporada extrai o máximo de
sua ambientação na região do Harlem em Nova Iorque, trazendo a baila todo o
legado cultural do lugar. A série entende que o Harlem não é apenas um bairro,
mas um espaço de resistência e ascensão da cultura e dos movimentos sociais
negros dos Estados Unidos e assim este é um lugar mais do que apropriado para a
jornada de Luke Cage. Dialogando com as figuras políticas do local, com sua
tradição musical de funk, rap e hip-hop, com as gírias e o modo de falar da área e do movimento dos
filmes blaxploitation dos anos 70, a
série nos faz entender o que é viver no Harlem e o que ele representa para seus
moradores. O roteiro também não se intimida em tratar de questões de
preconceito, brutalidade policial e direitos civis, abordando os temas com o
cuidado que merecem e sem cair em soluções fáceis.
Mike Colter (o Lemond Bishop de The Good Wife) segue ótimo como Cage, um
homem que só quer viver sossegado e deixar seus problemas para trás, hesitante
em tomar parte do conflito que se desenha no Harlem. Colter traz uma aura de
"sujeito comum" bastante crível, além de trazer uma boa dose de
carisma e humor conforme desfere as frases de efeito do personagem. Rosario
Dawson retorna como Claire Temple, a enfermeira que apareceu nas séries anteriores,
e continua o percurso da personagem em aceitar seu papel ao lado dos
super-heróis que conheceu. A brasileira Sônia Braga (que recentemente
protagonizou o excelente Aquarius)
tem uma passagem breve, mas significativa como a mãe de Claire.
Além do gângster Cottonmouth, a
temporada também traz outros vilões como a vereadora Mariah Stokes (Alfre
Woodward) e o violento Diamondback (Erik LaRey Harvey). Eu cheguei a temer que
o excesso de vilões fosse ser um problema, mas eles são desenvolvidos o
suficiente para serem interessantes e também uma ameaça crível, mesmo Cage
sendo aparentemente indestrutível. Cottonmouth e Mariah tem, ao seu modo, um
certo amor pelo Harlem e um respeito pelas tradições do lugar, ainda que
demonstrem isso de sua própria maneira. A trama tem o cuidado de estabelecer
razões compreensíveis para que ambos tenham chegado onde chegaram, mostrando-o
como pessoas que queriam escapar de uma vida de crimes, mas que foram forçados
a esse caminhos pelos tios. Diamondback tem seu arco baseado no velho clichê da
rivalidade fraternal, mas funciona como uma presença implacável que impõe uma
ameaça real a Cage, atuando como uma verdadeira força da natureza, que provoca
uma onda de caos e destruição por onde passa.
O vilão Shades (Theo Rossi), por
outro lado, é o elo fraco do grupo. Se nos quadrinhos ele usava um visor (daí
seu nome) que disparava raios, aqui ele simplesmente é um cara que usa óculos
escuros o tempo todo. Eu entendo que a mudança faz sentido na abordagem mais
"pé no chão" da Netflix e o problema nem é a alteração no personagem,
mas o fato dele parecer um imbecil usando óculos escuros até mesmo à noite e em
lugares fechados, em especial em uma cena que ele atira em Cage dentro de uma
boate (óculos escuros em um tiroteio à noite em um lugar fechado é de uma
estupidez sem tamanho).
Até imaginei que em algum momento
seria revelado que seus óculos traziam algum tipo de sensor ou radar, que justificaria
seu uso, mas não. O uso pouco orgânico do acessório é piorado pela composição cheia
de excessos do ator Theo Rossi, que insiste no cacoete de retirar os óculos
toda fez que precisa fazer alguma ameaça ou soar intimidador (um recurso ultra
óbvio pra dizer "agora a coisa ficou séria"). Sem mencionar sua opção
por uma voz forçosamente áspera, feita para soar sinistra ou ameaçadora, mas só
dá a impressão que o sujeito está com uma grave bronquite ou que está tentando
fazer uma imitação de quinta categoria do Batman do Christian Bale. Tudo isso
joga o personagem justamente no terreno de caricatura boba que as séries da
Marvel na Netflix tanto lutam para evitar.
A série consegue criar cenas de
ação muito boas que demonstram o poder e alcance das habilidades de Cage e
conseguem empolgar mesmo quando sabemos que em boa parte do tempo o personagem
não corre nenhum perigo real (afinal ele é virtualmente indestrutível). O
destaque fica por conta da longa luta entre ele e Diamondback no final da
temporada, na qual eles destroem uma grande avenida enquanto a cidade e a
polícia os observa. É um embate intenso, brutal e dramático, conforme alterna
entre o passado e presente do protagonista.
Ainda temos várias pontes com o
universo cinematográfico e televisivo da Marvel, com menções aos Vingadores,
Jessica Jones ou o Justiceiro e também a aparição de outros personagens das
séries para além de Claire. O traficante Turk, que apareceu na série do
Demolidor, aparece em alguns episódios, assim como a radialista Trish (Rachael
Taylor) de Jessica Jones, cujo
programa é ouvido em um dos episódios. Tudo isso de maneira bastante orgânica,
sem jamais soar como um fan service
gratuito. É estranho, no entanto, que os acordos de Sokovia de Capitão América: Guerra Civil, que regulamentam a ação de pessoas com super poderes, não sejam citados em nenhum momento e as ações de Cage, mesmo quando ele mostra abertamente seus poderes, nunca são ameaçadas pela regulamentação.
No fim Luke Cage mantêm o alto padrão estabelecido na parceria da Marvel
com a Netflix, ampliando seu universo ao mesmo tempo que tece uma trama intimamente
ligada com o patrimônio cultural das locações nas quais se baseia.
Nota: 8/10
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