Com mais de uma dúzia de filmes debaixo do braço a Marvel agora tenta emplacar seus personagens menos conhecidos nos cinemas. Ao mesmo tempo, precisa lidar com o desafio de oferecer algo diferente em um segmento (o de filmes de super-heróis) cada vez mais saturado e conhecedor dos lugares comuns deste tipo de narrativa. Este Doutor Estranho seria uma ótima oportunidade para o estúdio sair do seu molde típico e fazer algo mais ousado. O que entrega, no entanto, é uma história de origem que segue todas as fórmulas que o estúdio estabeleceu previamente desde o primeiro Homem de Ferro (2006), mas que funciona graças ao carisma de seu elenco e a criatividade em conceber o universo grandiloquente e absurdo habitado por seus personagens.
A trama é centrada em Stephen
Strange (Benedict Cumberbatch) um cirurgião brilhante e egocêntrico que perde o
uso das mãos em um grave acidente. Quando todos os recursos da medicina
tradicional falham, Strange viaja até o Nepal onde encontra a Anciã (Tilda
Swinton), que lhe mostra o poder das artes místicas e como elas podem lhe
devolver o uso das mãos. Ao aceitar os ensinamentos dela, porém, Strange se vê
no meio de uma guerra entre a Anciã e seu antigo discípulo Kaecillius (Madds
Mikkelsen) que deseja abrir um portal para uma dimensão sombria.
É um filme sobre um homem genial
e arrogante que depois de se ferir gravemente acaba sendo obrigado a reavaliar
sua vida e nesse percurso encontra as ferramentas que lhe permitem virar um
super-herói, encontrando uma nova vocação nessa função. Ou seja, é a mesma
trama e estrutura do primeiro Homem de
Ferro (2006) e se havia um filme que poderia dar à Marvel latitude para
ousar mais e quebrar seus moldes, Doutor
Estranho era esse filme. Tanto pelo fato do personagem ser pouco conhecido
(portanto menos risco de um backlash
negativo de fãs prejudicar a divulgação), quanto a própria noção de
multiversos, realidades e dimensões paralelas ser perfeita para comportar uma
estrutura e uma narrativa que fossem menos lineares e convencionais.
Filmes, como qualquer obra de arte, no entanto, devem ser julgados, avaliados e analisados por aquilo que são e não pelo que queríamos que fosse e como a aventura descompromissada que se propõe a ser, o filme funciona muito bem.
Filmes, como qualquer obra de arte, no entanto, devem ser julgados, avaliados e analisados por aquilo que são e não pelo que queríamos que fosse e como a aventura descompromissada que se propõe a ser, o filme funciona muito bem.
Benedict Cumberbatch fez uma
carreira interpretando sujeitos geniais e problemáticos (a série Sherlock, o filme O Jogo da Imitação), então não é nada inesperado que ele seja ótimo
como Strange, um papel que ele poderia fazer até dormindo. Ele acerta bem o
equilíbrio entre charme e arrogância, convencendo também da amargura e raiva
experimentada pelo personagem ao ver que perdeu tudo. Além disso, sua
composição vai mostrando como suas vivências vão aos poucos tornando-o mais
sereno e menos autocentrado. Há uma cena entre ele e Kaecillius na qual ele
percebe que o vilão fala exatamente como ele falava no passado e a face de
Strange traz um misto de espanto e vergonha, como se naquele momento ele
finalmente se desse conta de que realmente era.
Ao lado de Strange está Mordo
(Chiwetel Ejiofor), também discípulo da Anciã, que não vê com bons olhos o modo
como os magos constantemente mexem de maneira irresponsável com as leis da
natureza e pensa que deveriam ser mais comedidos no uso de seus poderes. É um
ponto de vista por vezes radical demais, como no fim do filme quando ele
repreende Strange pelo modo como enfrentou o vilão, mas ao mesmo tempo é
plenamente compreensível e justificável, o que cria uma relação complicada
entre ele e Strange, já que mesmo se respeitando e reconhecendo a necessidade
de cooperarem, também estão ideologicamente distantes ao ponto de que uma cisão
é inevitável.
Tilda Swinton traz uma aura de mistério para sua Anciã, alguém que parece sempre tão plácida que ficamos nos perguntando quais são suas reais intenções e o que se passa na sua cabeça. Wong (Benedict Wong), que nos quadrinhos é o criado/assistente de Strange, aqui tem um papel menos subalterno, ainda que sua função na trama seja predominantemente e a de alívio cômico.
Tilda Swinton traz uma aura de mistério para sua Anciã, alguém que parece sempre tão plácida que ficamos nos perguntando quais são suas reais intenções e o que se passa na sua cabeça. Wong (Benedict Wong), que nos quadrinhos é o criado/assistente de Strange, aqui tem um papel menos subalterno, ainda que sua função na trama seja predominantemente e a de alívio cômico.
Se os heróis funcionam, o vilão,
por outro lado, segue o padrão dos filmes da Marvel (diferente do que vem
acontecido nas séries em parceria com a Netflix) de um antagonista raso com uma
motivação vaga para sua sede de poder e destruição global, não muito diferente
de Ronan ou Malekith (o vilão do segundo Thor, caso não lembrem). Claro, Madds
Mikkelsen oferece uma presença imponente e carregada de gravidade, mas não
fosse a força do ator o vilão seria um amontoado de clichês desinteressantes. A
competente Rachel McAdams, por sua vez, é desperdiçada como a médica Christine
Palmer (e tive de checar o nome no IMDB de tão pouco memorável que a personagem
é) que dá prosseguimento ao hábito da Marvel em escalar atrizes talentosas para
não serem nada além do objeto de afeto de seus heróis, tal qual aconteceu com
Natalie Portman e Gwyneth Paltrow.
O que mais impressiona no filme
são mesmo as cenas de ação, cujos efeitos especiais são extremamente criativos
ao explorar as possibilidades do poder praticamente ilimitado de manipulação da
realidade de seus magos. Cidades inteiras se dobram e se transformam como
imensos fractais, portais extradimensionais nos levam a universos sinuosos e
lisérgicos, que são simultaneamente sinistros e ultra coloridos, como que fruto
de uma viagem em ácido (e imagino que ver esse filme sob efeito desse tipo de
droga deve ser uma experiência interessante).
O embate entre Strange e um
acólito de Kaecillius no plano astral é igualmente criativo e divertido e o
longo embate nas ruas de Nova Iorque consegue manter o ritmo e a coesão mesmo
diante de todo o caos e dobras de realidade causados pelos personagens. Há
também uma luta entre Strange e Kaecillius na China com o tempo se movendo ao
contrário que é igualmente criativa. Aliás, o filme é inteligente ao evitar o
lugar comum dos filmes de heróis com um quebra-pau generalizado no clímax ao
colocar Strange para derrotar o vilão usando sua inteligência ao invés da
força. Os poderes dos personagens acabam também servindo para algumas gags bem humoradas, como a cena em que
Strange usa seus poderes para roubar livros da biblioteca de Wong.
Doutor Estranho acaba fazendo pouco esforço para quebrar o molde
que a Marvel criou para si, mas funciona muito bem graças aos seus
protagonistas interessantes e sua criatividade em abraçar o universo
tresloucado e lisérgico da magia.
Nota: 8/10
Obs: Há uma cena adicional no meio dos créditos e outra no fim.
Trailer
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