Depois de denunciar o massacre às
populações indígenas de Rondônia em Corumbiara
(2014), o indigenista Vincent Carelli trata neste Martírio da situação dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul, que
ganharam o noticiário nacional depois de publicarem uma carta aberta falando que
só deixariam suas terras depois de mortos. Assim como em seu filme anterior, Martírio mostra como o Estado, com o
apoio de determinados setores da população, sistematicamente marginaliza e
contribui para o extermínio dessas populações. Se visto ao lado de Corumbiara, mostra como isso é algo que
atinge praticamente todas as populações indígenas do país.
O filme vai didaticamente
mostrando como a questão dos Guarani-Kaiowá vem desde o fim da Guerra do
Paraguai, quando suas terras foram anexadas ao Brasil e tratadas pelo Estado
brasileiro como devolutas (ao invés de território indígena), sendo passada a
pessoas de posses para a atividade agrícola. A partir daí, os indígenas se
tornaram uma espécie de "inconveniente", sendo jogados de um lado
para o outro em acampamentos que ficavam distantes de sua terra de origem
enquanto o governo tentava "civilizá-los".
Os indígenas, portanto, são
colocados em um desconfortável "entrelugar", sendo obrigados a fazer
parte de um país que não os quer (afinal suas terras ficavam pertenciam
originalmente ao Paraguai), recebendo o estatuto de cidadão brasileiro ao mesmo
tempo em que seus diretos básicos de cidadãos são negados. Contrapondo as
imagens de casebres improvisados de madeira à beira da estrada com as opulentas
fazendas de soja e suas máquinas de colheita, o filme mostra o quão desigual é
a situação dessas populações, acusadas pelos fazendeiros locais de "viverem
nababescamente", quando na verdade residem sob condições precárias.
Utilizando imagens de arquivo e
matérias jornalísticas, o documentário vai mostrando o esforço feito ao longo
da história para tornar essas populações invisíveis e varrê-las dos registros,
ações que até hoje dificultam que eles revejam suas terras. É justamente esse
apagamento que dá à truculenta bancada ruralista do legislativo brasileiro os
argumentos para deslegitimar a luta dos indígenas, a quem se referem como
"índios falsos" e "índio paraguaios" e acusam ONGs e
antropólogos indigenistas de "inventarem índios" (como se seus
trabalhos não seguissem um rigoroso método científico) quando tudo que eles
fazem é tentar reconstruir um registro que foi apagado, justamente para dar
lugar à ascensão do grande agronegócio. Mostra também como é construída a
retórica de demonização dessas populações, pegando momentos de enfrentamento e
resistência e enquadrando-os como ataques, concebendo-os como "selvagens
violentos", sendo que mesmo quando se comportam de modo verdadeiramente
agressivo, o fazem em reação às violências presentes e também passadas que
sofreram.
Apesar de construir a situação
dessas populações como um constante estado de opressão, o filme consegue criar
momentos de grande beleza ao mostrar os rituais daquele povo e suas tentativas
de levarem uma vida normal, mesmo com homens armados literalmente às suas
portas. Essas cenas são importantes não apenas para nos fornecer um respiro à
sensação de pessimismo e impotência que toma conta conforme percebemos a
imensidão do aparato financeiro e estatal que enfrentam, mas também para nos
lembrar que eles são pessoas como nós, que querem apenas viver em paz sendo
quem são, livres de perseguição ou preconceito.
Se há um problema, no entanto, é
o fato de por vezes ser redundante na construção de sua argumentação, muitas
vezes retornando a pontos já desenvolvidos de maneira satisfatória apenas para
reiterá-los, mas sem acrescentar muito ao que o próprio filme já desenvolveu
antes. Também se alonga demais na reprodução de sessões parlamentares e
encontros de lobistas do agronegócio. Entendo porque aquelas imagens e falas
estão no filme e elas são realmente importantes para demonstrar como os
opositores dos indígenas não tem o menor interesse no diálogo e na resolução
pacífica, ativamente perseguindo o extermínio e negação de direitos dessas
populações, como também revela toda a sorte de ódio e preconceitos arraigados
naquelas pessoas.
Por outro lado, as muitas falas
longas e sem cortes de parlamentares e lobistas berrando toda sorte de absurdos
e ameaças soa excessiva, já que duas ou três falas dessas já validariam o que o
filme deseja passar, mas toda vez que achamos que a narrativa irá seguir
adiante, ele nos dá mais e mais discursos, que, embora claramente usados para
gerar desconforto, tornam o filme desnecessariamente longo (tem mais de duas
horas e meia), quando poderia ser mais sintético no uso dessas imagens de
arquivo.
Isso, no entanto, não diminui o
impacto da contundente denúncia feita por Martírio,
que revela de maneira consistente a repressão e extermínio das populações
indígenas e do pouco que é feito pela sociedade e Estado para reverter esse
quadro.
Nota: 9/10
Este texto faz parte da nossa cobertura do XII Panorama Internacional Coisa de Cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário