O julgamento do ex-jogador de
futebol americano O.J Simpson, acusado de assassinar sua esposa (de quem vivia
separado na época) e o amigo dela Ron, foi considerado o "julgamento do
século". Nunca na memória coletiva dos Estados Unidos alguém tão famoso
esteve sob suspeita de cometer um crime tão bárbaro. O julgamento foi
transformado em espetáculo midiático, transmitido ao vivo na televisão, e com
toda a exposição emergiram outras questões que iam além da possível culpa de
O.J, remetendo à violência histórica da polícia de Los Angeles contra a
população negra, a constante impunidade de crimes relacionados a violência doméstica
e o próprio fascínio do país com as celebridades. É sobre esse julgamento que American Crime Story: The People v. O.J
Simpson, nova série de antologia (cada temporada traz uma história isolada)
do Ryan Murphy (responsável por American Horror Story), irá se debruçar.
A trama começa no dia do
assassinato de Nicole Brown e Ron. Quando a polícia vai à casa de O.J
Simpson (Cuba Gooding Jr.) notificá-lo da morte da esposa, encontram um rastro
de sangue na casa e o fato dele não perguntar como ela morreu ao ser notificado
de sua morte faz ele ser visto como suspeito. Todas as provas apontam para O.J,
que é preso. A promotora Marcia Clark (Sarah Paulson) é destacada para o caso,
dada sua experiência em lidar com julgamentos envolvendo violência doméstica. O
promotor Chris Darden (Sterling K. Brown) também é chamado ao caso, em parte
por sua experiência em investigar a conduta da polícia de Los Angeles, em parte
porque a promotoria queria um rosto negro na acusação caso a defesa de O.J
explorasse a questão racial. O.J, por sua vez, forma o chamado "time dos
sonhos" em sua defesa. O advogado de celebridades Howard Shapiro (John
Travolta), com várias conexões políticas, o experiente F. Lee Bailey (Nathan
Lane), que atuou em alguns dos casos criminais mais famosos do país, Robert
Kardashian (David Schwimmer, o eterno Ross de Friends), amigo pessoal de O.J há décadas e se junta ao time por
lealdade ao amigo. Completando o time vem o advogado de direitos civis Johnnie
Cochran (Courtney B. Vance), que se junta para mostrar que acusação contra O.J
é apenas mais uma reprodução da ação preconceituosa da polícia de Los Angeles.
A trama é inteligente ao não
tentar eleger heróis e vilões na situação (exceto talvez por O.J, já que sugere
sutilmente sua culpa) mostrando que cada um tem um claro interesse em estar ali
e um objetivo com aquele julgamento. Cochran tem razão em sua revolta contra o
preconceito racial e dívida histórica que a cidade tem com a população negra, Clark
tem razão em reclamar da impunidade em casos de violência doméstica e
feminicídio, Darden tenta evitar que a discussão racial tire o foco do
julgamento por achar que O.J, que sempre viveu em meio à riqueza e privilégio,
não é um símbolo da comunidade negra. Bailey quer retornar aos holofotes,
Shapiro tenta fechar um acordo com a promotoria porque crê que o cliente é
culpado e acha um grande risco levar o julgamento até o fim, enquanto que
Robert apenas quer convencer a si mesmo que seu melhor amigo não é um
assassino.
O elenco funciona muito bem em conjunto,
conseguindo trazer os vícios e virtudes de seus personagens. Courtney B. Vance
capta com precisão os maneirismos performáticos de Cochran, algo que facilmente
poderia descambar para a caricatura, mas que ele constrói com bastante
veracidade. Cuba Gooding Jr vai aos poucos plantando indicativos sutis de que
O.J não é um cara tão legal e inocente quanto ele parece ser, sempre revelando
uma breve e sutil variação no semblante sempre que é contrariado e
constantemente querendo dizer aos seus interlocutores o que imagina que eles
querem ouvir. David Schwimmer surpreende como Kardashian, trazendo uma
vulnerabilidade tocante ao seu personagem, que aos poucos vai se dando conta de
que o amigo pode ser culpado e a constatação o vai devorando por dentro, principalmente
por saber que abandonar a defesa naquele momento significaria admitir a culpa
dele.
A trama é eficiente em mostrar
como a mídia transforma o que devia ser um julgamento sério em uma grande
novela, sempre em busca de uma nova reviravolta ou detalhe sórdido, mais
preocupada em criar entretenimento do que um debate consistente. As cenas de
Robert Kardashian com as filhas (que se tornariam estrelas de reality show anos depois) mostram como a
fama pode ser vista como um fim em si mesmo e como as pessoas se deslumbram com
a exposição midiática. Do mesmo modo, revela como o histórico abuso de
autoridade da polícia de Los Angeles tornou fácil que Cochran cooptasse o
movimento negro para sua causa, contribuindo para descredibilizar o caso da
promotoria. Há até mesmo um episódio todo focado nos jurados, abordando o quão
difícil e cansativo foram os mais de duzentos dias de isolamento, contribuindo
para que ninguém tivesse paciência para deliberar o caso ao fim e chegando
rapidamente a um veredito só para finalmente irem embora.
As cenas de tribunal são cheias
de tensão, mesmo para quem já conhece (como eu) a maioria dos desdobramentos. A
câmera se movimenta rapidamente entre cada um dos falantes, quase como se cada
frase posse um golpe feroz desferido contra o lado adversário. O uso da música,
em especial de canções não originais, muitas vezes serve como um comentário bem
humorado do que acontece em cena. Um exemplo é a presença da canção Another One Bites the Dust (que em
português significaria algo como "mais um beija a lona") na sequência
de montagem que mostra as manobras de Clark e Cochran para derrubar os jurados
que não lhes interessa. Em outro momento, quando os jurados resolvem se
manifestar contra o tratamento recebido pelos oficiais do tribunal ouvimos a
canção de protesto Fight the Power.
O desfecho consegue fechar os
arcos de praticamente todos os personagens principais, deixando claro o que
aquela experiência significou para cada um deles e como aquilo impactou o resto
de suas vidas para o bem ou para mal. O julgamento de O.J foi mais do que o
julgamento de apenas um indivíduo, ele acabou virando uma discussão muito maior
sobre uma série de outras variáveis daquele país e o showrunner Ryan Murphy entendeu muito bem a complexa dinâmica e
implicações dos eventos que ocorrem naquele tribunal ao longo de tantos meses.
Nota: 10/10
Trailer
Nenhum comentário:
Postar um comentário