Uma pessoa sofre um atentado
violento e está à beira da morte. Ela é salva por uma grande corporação que lhe
dá um poderoso corpo cibernético, transformando-a em uma arma para combater o
crime e defender seus interesses corporativos. Essa é a trama de Robocop (1987) e seu remake. Porque a estou citando em um
texto sobre a adaptação do mangá Ghost in
the Shell de Masamune Shirow e seu longa animado de mesmo nome lançado em
1995 (sob o título de O Fantasma do
Futuro no Brasil) sob a direção de Mamoru Oshii? Bem, porque essa é
basicamente a trama deste A Vigilante do
Amanhã: Ghost in the Shell, o que deve deixar muitos fãs da obra original
decepcionados. O que não significa, no entanto, que seja um filme ruim.
Avaliar uma adaptação não é
simples. Por um lado tenho a clara ciência de que uma adaptação não precisa ser
uma reprodução ipsis litteris do
material original e precisa se sustentar com as próprias pernas. Por outro
lado, espera-se que, por mais que hajam mudanças nos eventos da narrativa, seja
de algum modo fiel às ideias e temas transmitidos pelo produto no qual se
baseia, caso contrário não faz sentido fazer uma adaptação. Ser bem sucedido
como adaptação também não vai implicar necessariamente que o filme é bom, assim
como o fracasso enquanto adaptação não é implica exatamente que o filme é ruim. A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell
tem muito pouco do material no qual se baseia e foge das discussões
existenciais mais complexas do mangá e do anime, mas ainda assim tem sua
parcela de qualidades.
A trama é centrada na Major
(Scarlett Johansson), uma mulher que tem o cérebro implantado em um corpo
cibernético avançado depois de um aparente acidente. Ela acaba integrando a
divisão de elite do governo japonês chamada Seção 9. Seu trabalho é perseguir
terroristas digitais e seu principal alvo é o hacker Kuze (Michael Pitt) que vem matando executivos e cientistas
da corporação que fez seu corpo ciborgue.
Scarlett Johansson traz
intensidade e uma postura resoluta à Major, alguém que vive para o seu
trabalho, mas guarda em si uma solidão e uma certa medida de melancolia sobre a
falta de lembranças de seu passado e sobre seu corpo sintético. É por causa da
força e fragilidade que ela transmite de modo convincente que a trama funciona,
mesmo quando tudo se torna derivativo demais.
O texto até tenta inicialmente
levantar os dilemas existenciais contidos no material original, que tentava
discutir o conceito de vida e se uma máquina com consciência própria poderia
ter "alma" ou poderia ser considerado um ser vivo. Afinal, quanto
mais o ser humano se aproxima das máquinas, analogamente mais as máquinas se
aproximam do humano, então seria inevitável que um ser artificial se tornasse
consciente. No entanto, o filme deixa de lado essas questões complexas para
adotar uma postura mais simplista e maniqueísta ao se tornar, lá pela metade,
uma trama clichê sobre uma heroína perseguida por uma corporação do mal com
objetivos relativamente vagos.
Como a natureza do hacker inimigo é alterada, toda a
discussão sobre a possibilidade de vida (ou "vida") em um ser
completamente sintético e o que diferencia um ser vivo de uma máquina é
extremamente diluída e simplificada. Com a ausência de um ser sintético
consciente, o desfecho do filme parece ir ideologicamente de encontro ao
produto original ao delimitar de modo claro que a vida é algo indubitavelmente
humana.
Visualmente o filme é competente
em criar um universo cyberpunk fiel
ao mangá e ao anime, com pessoas dotadas de implantes tecnológicos e armas
avançadas capazes de grande estrago. A concepção visual da noção de hackear o cérebro de outra pessoa é
ilustrada de modo bem sinistro, com infinitos braços sombrios puxando e
cobrindo o corpo da vítima. Do mesmo modo, a cena com as gueixas robóticas no
início consegue ir do belo ao arrepiante quando uma das robôs começa a atacar
os humanos. A cidade em si, com seus enormes letreiros neon e arranha-céus até
onde a vista alcança, no entanto, parece meramente uma reprodução menos escura
e sem carros voadores da cidade mostrada em Blade
Runner (1982).
Há também um bom trabalho de
edição e mixagem de som para conceber a sensação de uma mente conectada à
internet (ou seja lá o que eles tem no futuro), como no instante que a Major
acorda em sua casa e ouvimos uma grande massa sonora de vozes e ruídos que são
interrompidos no instante em que ela puxa o plugue de sua cabeça. Do mesmo
modo, é interessante como as distorções e repetições sobrepostas de fala são
aplicadas na voz de Kuze, como que para indicar a natureza "bugada"
do corpo robótico do personagem.
A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell acaba valendo mais pelo
carisma e força de Scarlett Johansson e pela sua qualidade técnica na concepção
deste universo e das cenas de ação, mas deixa de lado boa parte do poderoso e
rico subtexto do material original em prol de uma aventura simples e cheia de
lugares comuns.
Nota: 6/10
Trailer:
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