Quando o comediante Jordan Peele
anunciou sua estreia como diretor, não imaginaria que ele exploraria o gênero
do terror. Claro, este Corra! traz o
mesmo tipo de comentário social contundente e inteligente que ele estava
habituado em seu programa de televisão Key
and Peele, que fazia ao lado do também comediante Keegan Michael Key, mas
também traz um domínio da construção de um clima de pavor e tensão que,
confesso, não esperava encontrar em alguém vindo da comédia.
A trama é centrada em Chris
(Daniel Kaluuya), um jovem negro que viaja ao sul dos Estados Unidos ao lado de
sua namorada, Rose (Allison Williams, a Marnie de Girls), para finalmente conhecer os pais dela. Já nos primeiros
minutos na cidade natal da amada Chris percebe que há algo de racista no local.
Os pais dela, no entanto, se comportam como pessoas abertas e progressistas,
mas ele não deixa de notar que há algo estranho na conduta dos empregados da
propriedade, todos negros por sinal, que parecem estranhamente dóceis. Quando a
família dá uma festa, Chris começa a se sentir incomodado com o modo como os
convidados falam com ele e também com a conduta estranha do único outro negro que
encontra na festa. Aos poucos, vai descobrindo que os parentes de sua namorada
tem intenções sinistras em relação a ele.
A narrativa vai construindo aos
poucos a tensão, inicialmente fazendo parecer que todo desconforto vem do fato
de Chris ser o único negro em um ambiente de brancos no qual ele é tratado ou
com hostilidade ou com uma incômoda condescendência. Ao fazer seu público
aderir à perspectiva de Chris, o filme consegue, de maneira orgânica e sem
chamar atenção para si, nos fazer perceber o tipo de racismo (velado ou explícito) que um negro tem que conviver cotidianamente. Tanto que Chris
sempre parece levar com naturalidade certos comportamentos, sempre sorrindo e
respondendo que "não tem problema" como se estivesse acostumado e
resignado em ser tratado daquela maneira.
Conforme o tempo passa, porém, o
desconforto vai dando lugar à suspeita e a suspeita vai se tornando tensão a
partir do momento que Chris passa a identificar comportamentos estranhos na
família da namorada e desconfia que eles estão escondendo algo sombrio em sua
propriedade. Dizer mais seria dar spoilers,
mas a partir do momento em que compreendemos o que está acontecendo, o filme
entra com os dois pés no território do slasher
com Chris tendo que fugir do lugar à força.
A tensão é ampliada pelo uso da
música, que desde o início já nos avisa que algo sombrio aguarda o protagonista
ao abrir o filme com um cântico que remete a algo religioso, mas com um arranjo
que lhe dá uma qualidade macabra e fantasmagórica. Ao longo do filme vai
mantendo uma aura de mistério com acordes sinuosos, que dão a constante
impressão de algo oculto ali, e também pontua com gravidade os momentos de
maior tensão. O roteiro ainda consegue
oferecer alguns breves respiros de toda essa tensão através das conversas via
telefone entre Chris e seu amigo Rod (Lil Rel Howery). Nesses momentos o
protagonista tenta raciocinar o que está acontecendo com ele e sempre rende
reações hilárias de seu melhor amigo.
Por trás de sua ótima superfície
de filme terror, a obra traz um contundente conjunto de metáforas sociais muito
bem engendradas. Isso começa já na escolha e motivação dos vilões, que ao invés
de serem os típicos sulistas caipiras que odeiam negros são uma espécie de
intelectuais racistas. Adeptos aos antiquados (e improcedentes) ideais
lombrosianos de que negros são mais geneticamente propensos a trabalhos físicos
ou a terem uma melhor performance na cama, os vilões servem como um lembrete de
que esse tipo de discurso que aparentemente "destaca as qualidades" da
população negra, tratando-os sob um viés de exotismo, é tão perigoso e
preconceituoso quanto outras formas mais abertamente explícitas de racismo.
A ideia de uma das antagonistas
usar da hipnose para manter os negros sob controle e convencê-los de que eles
são "da família" serve como uma metáfora aos muitos mecanismos
sociais, políticos e discursivos que visam convencer a população de racismo não
existe. Do mesmo modo, o procedimento que os vilões tentam realizar no fim
transmite a noção de certa parcela da sociedade branca só está disposta a
aceitar e integrar os negros se eles tiverem uma "mente branca" ou
abrirem mão de sua identidade enquanto negros.
Corra! serve como uma excelente estreia na direção de Jordan Peele,
sendo um eficiente e sinistro filme de terror, mas também uma contundente
metáfora social sobre o racismo estrutural da sociedade.
Nota: 10/10
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