Narrativas não são apenas
histórias que contamos uns aos outros para nos entreter e passar o tempo.
Querendo ou não, a construção de uma narrativa está imbricada com os valores,
ideias e visões de mundo daqueles que tecem o seu discurso. Imbuído nelas está
alguma noção de verdade sobre o mundo, a natureza ou as relações humanas. Isso
fica ainda mais evidente nas narrativas míticas. Os mitos olimpianos, nórdicos
ou africanos não são apenas histórias sobre deuses, herois e vilões, elas falam
sobre a concepção de mundo das sociedades que disseminaram essas narrativas,
mostram quais os valores e ideias que eram caros àquelas pessoas, o que era
considerado virtude e o que era considerado vício. Com o tempo algumas dessas
histórias são esquecidas enquanto outras continuam a reverberar. Algumas seguem
como eram, enquanto outras são modificadas para se adequar aos novos tempos. É
exatamente sobre nossa relação com essas figuras míticas e divinas que trata a
série American Gods, adaptação do
romance Deuses Americanos de Neil
Gaiman.
A trama é centrada em Shadow Moon
(Ricky Whittle), um ex-condenado que tem sua liberdade condicional antecipada
depois da morte de sua esposa, Laura (Emily Browning). Sem rumo na vida, acaba
aceitando um emprego como motorista do misterioso Mr. Wednesday (Ian McShane),
um golpista que contrata Shadow como motorista/assistente/faz-tudo. O
protagonista sai em uma viagem através dos Estados Unidos ao lado do patrão,
que aparentemente está tentando reunir antigos companheiros. Aos poucos vai
sendo revelado que Mr. Wednesday está reunindo antigos deuses que caíram no
esquecimento para travar uma batalha contra os novos deuses que dominam os EUA:
a internet, a mídia e o mercado.
No universo da série a crença
humana em deuses e seres fantásticos os faz existirem no nosso mundo. Esses
deuses se tornam mais fortes conforme seus seguidores aumentam e enfraquecem
quando as pessoas deixam de idolatrá-los ou usarem seus nomes. Os velhos deuses
representados na série são exatamente isso, versões decadentes de seres outrora
poderosos, que lutam para se manterem relevantes nos dias atuais. Um desses
deuses é Bilquis (Yetide Badaki), a deusa do amor. Insegura e desesperada por
atenção, Bilquis é quase uma mendiga de afetos, desejosa por agradar os humanos
para poder ser reverenciada por eles.
O conflito central entre os
velhos deuses e novos deuses não é apenas uma batalha por devoção humana ou um
simples conflito entre o velho e o novo, é também um embate que diz muito sobre
quem somos enquanto sociedade e o que valorizamos. Em um determinado episódio
Wednesday diz à Mídia (Gillian Anderson, a eterna Scully de Arquivo X) que os antigos deuses ofereciam inspiração aos humanos
enquanto que os novos apenas oferecem produtos, meras distrações para as
angústias da vida, mas que em nada as resolvem.
Em seu esforço de recrutar
aliados, Wednesday encontra alguns deuses que se aliaram aos novos e por isso
foram reformulados ao novo contexto dos Estados Unidos. Vulcano (Corbin
Bersen), ou Hefesto para os gregos, deus da forja, por exemplo se tornou o
símbolo de uma marca de armas de fogo, mostrando como as forças dos novos
deuses transformaram essa antiga figura em um produto a ser vendido e um
símbolo da cultura armamentista estadunidense, revelando como os mitos e
narrativas de outrora são reapropriados e reconfigurados para atender às
mudanças da sociedade.
Ao contar como os deuses chegaram
aos EUA através de imigrantes, a série também comenta sobre o processo de
formação do país e como vários grupos sociais foram tratados historicamente,
como acontece na cena que introduz Anansi (Orlando Jones). Invocado por
escravos em um navio negreiro, o deus vê o futuro e através de um poderoso
discurso avisa aos cativos os séculos de maus tratos, perseguição e preconceito
que aguardam eles e gerações de seus descendentes, sugerindo que queimar o
barco e morrer no naufrágio seria um destino melhor.
O aspecto visual da série
impressiona tanto quanto as ideias que traz. Investindo em cores fortes e saturadas,
cheio de tons de neon, a fotografia confere às imagens um caráter intensamente
onírico, quase como se estivéssemos presenciando um delírio febril de alguém.
Esse clima de sonho ou pesadelo é corroborado pela própria natureza insólita
das imagens que a série cria, como a cena em que Bilquis "devora" um
homem com sua vagina e posteriormente vemos o sujeito flutuando em meio a uma
nebulosa de estrelas com sua ereção em riste. Igualmente insólitas são as
visões de Shadow com uma imensa árvore e um búfalo com olhos flamejantes ou a
intensa cena de sexo envolvendo um jinn.
Ian McShane confere um ar de
mistério a Wednesday, bem como um certo charme cafajeste que torna
compreensível o modo como ele consegue enganar as pessoas tão facilmente.
Gillian Anderson está simplesmente camaleônica como Mídia, assumindo a forma de
uma personalidade midiática (Lucille Ball, Marilyn Monroe, David Bowie ou Judy
Garland, só para citar algumas) cada vez que se manifesta e incorporando com
eficiência os maneirismos e modo de falar dessas figuras. Já Crispin Glover
(sempre lembrado como o George McFly de De
Volta Para o Futuro), faz do Mr. World uma presença imponente e instável, rechaçando com
violência qualquer um que não siga exatamente aquilo que quer.
Em meio a tantos personagens
insólitos e interessantes, o elo fraco acaba sendo o protagonista Shadow Moon.
Durante boa parte da temporada Shadow serve basicamente como os olhos e boca do
público, intrigado e confuso com o que vê, mas tirando isso é uma folha em
branco. Não ajuda que a trama demore a nos dar um vislumbre do que Wednesday
quer com ele e qual o seu papel em seus esquemas de guerra contra os novos
deuses.
A trama em si, ou melhor a quase
ausência dela, é outro problema. Os primeiros episódios introduzem uma ampla
gama de personagens, cada um isolado do outro e demora a fazer as coisas
convergirem ou mesmo deixar claro qual será o rumo da temporada. Durante boa
parte dos episódios a série parece mais interessada em explicar as regras desse
universo e como ele funciona, mas se prolonga demais em declarar que história
quer contar nele. A trama principal (que é a busca de Wednesday por aliados)
segue a conta-gotas e em doses homeopáticas, dando por vezes a impressão de que
falta direcionamento e que a série está mais interessada em suas digressões
sobre as origens dos deuses. Alguns episódios tem, inclusive muito pouco a
acrescentar ao nosso entendimento sobre aquele universo ou personagens e
considerando que a temporada só tem oito episódios, esse tipo de filler é inaceitável.
Um bom exemplo disso é o
penúltimo episódio. Ao invés de preparar o terreno para o clímax que ocorrerá
no episódio seguinte, o episódio faz uma grande digressão para contar a
história de uma das imigrantes irlandesas que levou o leprechaun Mad Sweeney
(Pablo Schreiber) aos EUA. A trama da imigrante em nada serve ao conflito
principal, exceto espelhar a jornada de Laura Moon e como ambas tiveram suas
vidas transformadas pelo leprechaun, mas não diz nada que outros episódios já
não tinham dito. A única informação relevante do episódio inteiro é a revelação
de que Sweeney estava envolvido na morte de Laura, o que explica muito das ações
do personagem, mas contar a história da imigrante irlandesa de modo algum era
necessário para chegar nesse ponto.
Apesar de muitos problemas de
ritmo e de um protagonista que tem dificuldade de dizer a que veio, a primeira
temporada de American Gods envolve
pelo universo singular que cria, pela sua inventividade visual e pelo modo como
usa esse cenário fantástico para falar sobre a formação de nossas identidades e
quem somos enquanto sociedade. Exatamente o que se espera de uma narrativa
mitológica.
Nota: 8/10
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