Com tantos filmes e séries sobre
futuros distópicos apocalípticos (de Jogos Vorazes a The Walking Dead) esta
primeira temporada The Handmaid's Tale
parecia ser só mais uma na multidão de possibilidades nada agradáveis para o
futuro da raça humana. A série, no entanto, se destaca pelo modo contundente
como usa esse cenário para tratar de temas importantes e pela coesa construção
de seu universo. O texto a seguir contem SPOILERS.
A trama se passa em um futuro no
qual a taxa de fertilidade caiu imensamente. Os Estados Unidos sofreu uma
espécie de golpe militar coordenado por extremistas religiosos e transformou o
país em uma ditadura teocrática patriarcal. As mulheres não podem mais ter
empregos ou propriedades, sendo completamente submissas aos homens. Elas também
foram divididas em castas: as esposas, destinadas a se casarem com homens
proeminentes, as "Marthas", destinadas ao trabalho doméstico, e as
poucas mulheres férteis que restaram foram obrigadas pelo novo governo a se
tornarem aias.
As aias são colocadas nas casas
de famílias proeminentes e são forçadas a fazer sexo com o homem da casa para
poder engravidar deles. Uma vez tendo o filho daquela família, a aia é alocada
em outra família para continuar o processo. Basicamente, as aias são mulheres
transformadas em animais reprodutores contra a própria vontade. A protagonista
da série é Offred (Elizabeth Moss), recém alocada na casa de um dos líderes do
governo, o comandante Fred Waterford (Joseph Fiennes), e uma vez por mês é
obrigada a deitar-se com ele, sendo segurada na cama pela esposa do comandante,
Serena Joy (Yvonne Strahovski), para que ele a engravide.
É um universo no qual os homens
detém todo o poder e as mulheres não possuem nenhum. Mesmo as esposas das
autoridades não passam de figuras decorativas, sem qualquer voz ativa em uma
sociedade na qual as mulheres não possuem qualquer direito de cidadania. As
aias deixam de usar seus nomes e passam a chamadas pelo nome do homem da casa
no qual vivem acompanhado do prefixo "of" (que em inglês significa
"de"). Deste modo Offred literalmente quer dizer "de Fred",
deixando claro que ela, assim como as demais aias, é uma mera propriedade ou
objeto e não uma pessoa dotada de individualidade e personalidade.
Se inicialmente Offred parece
plácida e resignada ao seu papel de, bem, de escrava sexual, já na primeira vez
que ouvimos sua narração em off
percebemos que aquilo é uma máscara que ela usa para tentar sobreviver nesse
brutal novo mundo e que na verdade ela odeia tudo aquilo e deseja fazer algo
para mudar sua situação. O arco dela nesta primeira temporada é justamente o de
tentar achar um meio para enfrentar esse sistema. Através de seus flashbacks ao longo da temporada vemos
como as coisas chegaram a tal ponto, como as liberdades individuais foram aos
poucos sendo eliminadas "por motivos de segurança" e ninguém parecia
se importar muito até que direitos civis básicos começaram a ser negados e a
este ponto era tarde demais para reagir. Elizabeth Moss é ótima em trazer a
sutileza da raiva e revolta de Offred por baixo de sua aparente serenidade e
obediência.
Yvonne Strahovski, por sua vez,
faz de Serena uma mulher fria e amargurada, cuja conduta parece ligada à
chegada de Offred a sua casa. Afinal, ela precisa assistir todo mês a aia ser
penetrada pelo marido para dar a ele o filho que ela não pode dar. Conforme
vamos conhecendo mais sobre o passado dela, no entanto, vemos que parte de sua
conduta também vem do fato de que ela apoiou o marido desde os primeiros
estágios do golpe, ajudando até a elaborar parte da doutrina usada pelo atual
governo, mas assim que houve a mudança de regime deixou de ser tratada como uma
igual para ser uma cidadã de segunda classe, perdendo o poder que almejava. A
oposição entre ela e Offred é também delineada pelos figurinos. Se as esposas
vestem azul, uma cor fria e costumeiramente ligada à melancolia ou tristeza, as
aias vestem vermelho, uma cor quente.
Joseph Fiennes traz certa medida
de ambiguidade ao comandante, nos deixando em suspense quanto às suas intenções
com Offred, em especial quando ele começa a quebrar o protocolo e passa a
interagir com a aia em outras situações além de seu "ritual" mensal.
Ficamos em dúvida se ele faz aquilo por alguma necessidade de contato humano,
por querer vê-la como uma pessoa e não como coisa, ou por um prazer medonho de
exercer controle e poder sobre ela. Aos poucos vamos também vendo como ele é um
hipócrita, uma vez que seu discurso sobre família e valores em nada condiz com
sua conduta privada, tanto com a esposa como com sua aia.
A câmera, quase sempre
centralizada no rosto de Offred e bem próxima a ele contribui para a sensação
de aprisionamento da personagem, que se sente sufocada por seu cotidiano de
serva e constantemente sob vigilância, temendo pelo que lhe pode acontecer. É
afinal de contas um estado brutal, no qual as mulheres não tem qualquer voz
sobre o que é feito com seus próprios corpos, os cadáveres de
"subversivos" ficam pendurados pela cidade e linchamentos públicos
são uma pena de morte sancionada pelo governo. Os julgamentos e crimes, por
sinal, não são feitos a partir de leis, mas a partir de versículos bíblicos
manipulados e interpretados ao bel prazer daqueles que detêm o poder.
Extremamente atual em um contexto
no qual forças ultraconservadoras tem obtido cada vez mais holofotes na
política de muitos países, essa primeira temporada de The Handmaid's Tale é uma assombrosa e poderosa narrativa sobre
totalitarismo e preconceito, ancorada pelo ótimo trabalho de Elizabeth Moss e
de seu coeso e brutal universo ficcional.
Nota: 10/10
Trailer
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