Quando um filme mexe muito
conosco chega a ser difícil encontrar palavras para ponderar sobre a
experiência. Isso definitivamente aconteceu comigo ao terminar de assistir este
Raw (ou Grave no original), terror francês sobre canibalismo e
amadurecimento.
Justine (Garance Marillier), uma
jovem vegetariana, entra para uma importante faculdade de veterinária e durante
o trote ela é obrigada a comer carne crua de animal. Nos dias que seguem ela começa
a se sentir mal, com erupções em sua pele e uma fome insaciável por carne. Com
o tempo a carne animal passa a não satisfazê-la e ela resolve experimentar
carne humana quando sua irmã, Alexia (Ella Rumpf), acidentalmente corta fora
parte do dedo.
A primeira fonte de incerteza
reside no que está acontecendo com Justine. Será que havia alguma coisa na
carne? Será que ela está se transformando em algum tipo de criatura? É possível
que ela apenas esteja surtando em virtude do estresse dos estudos e das constantes
provocações dos estudantes veteranos? A narrativa deixa lacunas suficientes para
que nossas conclusões nunca fiquem sob um terreno sólido, o que aumenta a
incerteza, a tensão e o suspense.
O filme oferece muitas imagens
grotescas, como a angustiante cena em que Justine "vomita" cabelos,
puxando fios intermináveis de sua boca e garganta em uma longa cena que
certamente pode causar náusea em quem tem estômago fraco. Do mesmo modo, as
cenas dela se debatendo na cama com placas e erupções na pele remetem ao body horror (ou horror corporal) dos
filmes de David Cronenberg. Isso, claro,
sem mencionar os momentos de canibalismo. A cena em que Justine devora o dedo
decepado da irmã e aterrorizante não só pela crueza gráfica pela qual tudo é
retratado, mas pelo semblante de satisfação e prazer, sem qualquer resquício de
dúvida ou culpa por parte de Justine. É como se naquele momento ela tivesse se
encontrado, descoberto quem é e o prospecto disso, claro, nos deixa na ponta da
cadeira.
O canibalismo, no entanto, não
está presente apenas como uma oportunidade de chocar o público com cenas
grotescas de violência gráfica, serve também como uma metáfora da natureza
humana que se presta a diferentes leituras. É possível compreender o a
transformação da personagem como uma análogo para o processo de amadurecimento
emocional e físico, como esses impulsos são como a descoberta de sentimentos e
emoções complicadas (como o amor ou o desejo sexual) que Justine até então não
tinha vivenciado. O impulso transgressor da juventude também é metaforizado
pelo comportamento canibal da protagonista, como se o ato fosse uma maneira de
mostrar seu não conformismo com os padrões que lhe são impostos e rechaçar a
personalidade controladora de sua irmã e a superproteção de seus pais.
Podem ser um comentário sobre a
selvageria inata no ser humano e como há em nós essa potência primitiva e
selvagem que a todo momento tenta escapar para nossa superfície. Ainda há a
dimensão do laço familiar e o modo como a descoberta do canibalismo se equivale
ao medo de um jovem em se tornar um adulto igual à família da qual ela tanto
tentou se diferenciar.
A fotografia constantemente
coloca tons neons de vermelho na sua iluminação. Um lembrete visual da fome da
protagonista que paira sobre os ambientes como uma nuvem de ameaça cujo
significado os personagens estão alheios. A estratégia aumenta tensão para o
público, que sabe de um perigo do qual as pessoas que estão em cena não fazem
ideia e a música ajuda a ampliar o clima de desconforto e apreensão.
Complexo, impactante e
instigante, Raw é um dos melhores
filmes de terror dos últimos anos. Uma excelente estreia para a diretora e
roteirista Julia Ducurnau que me deixa curioso por seus próximos projetos.
Nota: 9/10
Trailer
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