Há uma frase do filósofo
Friedrich Nietszche em seu livro Além do
Bem e do Mal que diz que quem enfrenta monstros pena tornar-se um deles e
que ao olhar o abismo o observador por ele também é contemplado. É possível
interpretar que Nietszche queria falar sobre como é impossível passar por
situações de moral questionável sem se afetado por elas e perseguir um inimigo
significa absorver e se deixar "contaminar" em alguma medida por sua
visão de mundo e maneira de pensar. É sobre isso que irá tratar essa primeira
temporada de Mindhunter.
A série se passa na década de 70
e é centrada no agente do FBI Holden Ford (Jonathan Groff, a voz do Kristoff de
Frozen). Holden trabalha como
negociador de reféns e instrui novos agentes neste tipo de atividade, mas vai
percebendo que seus conhecimentos não são suficientes para dar conta da conduta
dos criminosos. Ele decide voltar à universidade e conhece Wendy Carr (Anna
Torv), uma acadêmica que pesquisa condutas sociopatas. Ao lado dela e do agente
Tench (Holt McCallany), também um instrutor do FBI, Holden propõe um estudo
consistindo em entrevistar presos condenados por múltiplos crimes violentos
para entender o que move esse tipo de criminoso.
A narrativa retrata uma mudança
de abordagem no pensamento criminalístico empregado pelas agências de
policiamento. A transição entre o modelo criminalístico lombrosiano (hoje
considerado excessivamente determinístico) que vigorava desde o final do século
XIX e uma abordagem que se apropria da psicologia social e da psicanálise para
entender que todo criminoso é produto de um meio social que cria condições para
seu surgimento. A novidade não é bem vista pelo FBI ou pelos policiais das
diversas cidades pelas quais Holden e Tench passam como instrutores, com muitos
considerando que eles estão "com pena dos bandidos" ou relativizando
o crime, sendo que na verdade a compreensão do pensamento criminoso permite
mais eficiência pra investigá-los.
A série faz um bom uso de sua
ambientação setentista e do contexto da época. É um momento de baixa autoestima
e ressaca moral para os Estados Unidos com o fracasso da guerra no Vietnã, os
escândalos envolvendo Richard Nixon, o assassinato de Kennedy na década
anterior e o terror urbano provocado por assassinos em série como Charles
Manson, o Filho de Sam ou o Zodíaco. Se antes os EUA tinham certeza de sua
soberania, naquele momento crescia a impressão de um país que perdeu seu
projeto de nação e caminha rumo ao caos. Nesse sentido, há um claro paralelo
entre esse período e os dias atuais com a ascensão de forças reacionárias e da
ideia de "pós-verdade", guerras intermináveis e sem sucesso no
Oriente Médio e a ameaça de terrorismo sempre à espreita, tal qual os
assassinos de outrora.
Essas referências contextuais
também se dão em um campo metalinguístico com os produtos da narrativa
policial. Em uma cena do primeiro episódio Holden cita que dizer "apenas os fatos, madame" durante o
interrogatório não basta mais. A frase era um bordão do detetive Friday,
protagonista da série Dragnet que fez
muito sucesso nos anos 50. A fala não está ali como easter egg, mas como um comentário metalinguístico de que a
narrativa policial enquanto gênero narrativo superou aquele olhar simplista de
outrora em relação à natureza do crime e à objetividade investigativa. Do mesmo
modo, quanto Holden usa seus conhecimentos para ajudar a polícia de uma pequena
cidade a desvendar uma série de assassinatos, um policial local o compara a
Sherlock Holmes, demonstrando como certos arquétipos conseguem sobreviver mesmo
quando o gênero se transforma.
Afinal, Holden é um sujeito
extremamente inteligente, com grande capacidade dedutiva e acuidade mental,
ainda que socialmente inepto e relativamente misantropo, tal qual o famoso detetive criado por Conan Doyle. Ao longo da temporada
o personagem vai se perdendo na sordidez dos assassinos que entrevista e mesmo
negando, o contato com aqueles sujeitos começa a afetar seu comportamento,
tornando-o paranoico e bruto, por vezes tendo uma conduta que beira a
sociopatia. O ataque de pânico ao fim da temporada funciona como um momento de
implosão para o personagem, que finalmente sente emergir todos os sentimentos
que ele empurrava para cantos escuros de sua mente, tentando se convencer que
aquilo não o afetava.
A jornada do personagem também
demonstra como esses métodos, apesar de úteis, tem suas limitações. Embora seja
possível construir o perfil psicológico de um suspeito a partir de seus crimes,
a trama sugere que é impossível determinar previamente se alguém se tornará um
criminoso. Isso fica claro nos episódios em que Holden tem que lidar com um
diretor de escola com uma conduta inapropriada. Apesar do modo que o sujeito
lida com os alunos ser esquisito e pouco convencional, Holden não tem nenhuma
evidência concreta de que ele comete algum tipo de abuso ou pode vir a
cometê-los e ainda assim o agente faz uma escolha que destrói a vida do
educador.
Igualmente afetado pelo trabalho
é o agente Tench. Se o distanciamento dele entre a esposa e o filho adotivo
parece ser por conta de suas viagens, aos poucos a trama vai deixando claro que
as viagens são para ele uma fuga deliberada, que ele se afasta por medo que seu
trabalho os transforme tal qual está acontecendo com ele. Esse tipo de jornada
de perdição moral não é exatamente novidade, mas a série conduz tudo de maneira
que é possível sentir o peso e os traumas se formando naqueles sujeitos e
tornando crível a mudança que se abate sobre eles. É uma pena que a subtrama
envolvendo Tench e sua ligação, ou falta dela melhor dizendo, com seu filho
adotivo acabe sendo deixada de lado ao longo da temporada, já que ela poderia
ajudar a enriquecer o personagem. Espero que as próximas temporadas deem um
pouco de atenção a isso.
O arco da Dra. Carr, por exemplo,
consegue ilustrar isso até de maneira imagética. Quando ela se muda para ficar
próxima da sede do FBI ela passa a alimentar um gato que fica na lavanderia de
seu prédio, deixando uma lata de atum aberta para que o animal se alimente. Ao
longo da temporada ela repete essa ação alguma vezes até que um dia, ao invés
da lata vazia, encontra a lata cheia de formigas e com o atum estragado. A cena
serve como uma metáfora visual para o universo interno da personagem no qual
até mesmo atividades cotidianas e que lhe davam alegria se tornaram eventos de
pavor e sordidez.
A série acerta também na criação
dos seus psicopatas, dando a eles personalidades e maneirismos bem distintos
entre si, mas ao mesmo tempo conferindo-lhes características que tornam
possível perceber padrões entre eles. Do patologicamente mentiroso Jerry Brudos
(Happy Anderson) ao aparentemente cordial e carente Ed Kemper (Cameron
Britton). É interessante perceber que inicialmente Ed fala de maneira
extremamente educada e calma, mas conforme sua conversa vai de trivialidades
aos detalhes gráficos de seus crimes (incluindo como introduziu seu pênis na
cabeça decepada de sua mãe) e ele mantêm o mesmo tom de voz supostamente sereno,
percebemos que aquilo não é polidez ou calma, ele simplesmente não registra
empatia ou emoções e por isso sua voz sempre soa tranquila.
A primeira temporada de Mindhunter tinha tudo para ser só mais
uma série policial, mas se sobressai das demais pela seu cuidado na construção
de personagens e pelo seu olhar sobre o desenvolvimento das ciências criminais.
Nota: 9/10
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