O famoso romance de Agatha
Christie Assassinato no Expresso do
Oriente já tinha recebido uma excelente adaptação de mesmo nome dirigida
por Sidney Lumet em 1974, que chegou a ser indicada a seis Oscars e levou um
para a atriz Ingrid Bergman. Assim sendo, há alguma razão para se fazer uma
nova adaptação sendo que o filme de 1974 se sustenta perfeitamente ainda hoje e
essa nova versão não faz nenhuma mudança na sua ambientação no final dos anos
20 ou na resolução do crime em si? Bem, não, a nova versão é bem desnecessária,
ainda que consiga ser competente em recriar a famosa narrativa policial.
A trama se mantem a mesma dos
livros. O famoso detetive Hercule Poirot (Kenneth Branagh) está viajando no
Expresso do Oriente quando uma nevasca interrompe a viagem e um dos
passageiros, o sinistro Ratchett (Johnny Depp), é encontrado morto em sua
cabine que estava supostamente trancada. Com todos os passageiros como
suspeitos, o gerente da linha de trem, o Sr. Bouc (Tom Bateman), pede que
Poirot investigue o caso antes que o trem seja consertado e chegue à próxima
estação, na qual o culpado poderá
desembarcar e evitar a captura. Poirot precisa então correr contra o tempo para
resolver esse mistério.
Considerando que se trata de um
mistério com mais de 80 anos de idade e que boa parte do público já sabe a
resolução do crime, o filme se apoia em seus fascinantes e ambíguos personagens
para manter o público interessado e isso funciona muito bem graças ao ótimo
elenco reunido aqui. Cada um dos passageiros tem seu tempo para ser
desenvolvido e para intrigar a audiência com seus segredos e personalidade
exótica.
Os momentos em que Poirot os
confronta com suas mentiras sempre rendem embates verbais excelentes,
principalmente quando os personagens se despem da fachada de cortesia que
vestiam e assumem quem realmente são, em especial nas cenas envolvendo a
governanta Debenham (Daisy Ridley, a Rey de Star Wars), o professor Hardman (Willem Dafoe) e a viúva Hubbard (Michelle Pfeiffer).
O diretor Kenneth Branagh valoriza o desempenho cuidadoso de seus atores
mantendo a câmera próxima de seus rostos e dando a eles tomadas longas com
poucos cortes para que vejamos o desabrochar de suas motivações. Nesse sentido
não é por acaso que Branagh constantemente filme esses personagens por trás dos
vidros espelhados do vagão-restaurante, criando imagens com reflexos múltiplos
e distorcidos dos suspeitos, denotando a personalidade dual deles.
Kenneth Branagh é ótimo em
construir os maneirismos excêntricos de Poirot, tornando-o um sujeito com
alguma medida de transtorno obsessivo-compulsivo. Sua dependência de simetria e
de tentar fazer tudo se encaixar acaba tornando-o um excelente observador e lhe
confere uma extrema acuidade mental. Branagh também traz bom humor o suficiente
para evitar que o personagem se torne uma mera caricatura ou coleção de chistes
ou frases de efeito, dando ao detetive um necessário carisma para que seja
envolvente acompanhar seu processo investigativo.
Ocasionalmente algumas deduções
de Poirot não são devidamente bem explicadas, como se o roteiro pulasse algumas
etapas do processo de raciocínio lógico que levou o personagem a estabelecer
uma relação causal entre dois elementos. Um exemplo é a cena em que ele descobre
que a morte de Ratchett tem ligação com o Caso Armstrong (algo que sequer tinha
sido citado pela trama até então) pela mensagem incompleta em um bilhete
parcialmente queimado e nunca fica claro como ele chegou nessa conclusão.
O principal problema, no entanto,
reside no desfecho do filme e a decisão tomada por Poirot em relação aos
culpados. Eu imagino que Branagh quis dar ao personagem
um arco dramático próprio no qual ele se transformasse e aprendesse algo. Penso
que ideia devia ser a de tirar o personagem da sua zona de conforto tradicional
e por em questão suas crenças, saindo de seu maniqueísmo simplório de bem e mal
absolutos.
A questão é que ao alterar a
decisão final do detetive em relação ao romance de Christie apenas simplifica
uma questão moral bem complexa e apenas leva o personagem a um extremo oposto
do espectro moral/ideológico sem lhe dar nenhuma complexidade adicional. No final do romance Poirot simplesmente lavava suas mãos e deixava que Bouc decidisse o que contar para a polícia depois de apresentar suas duas teorias, no filme de 74 o detetive claramente mostrava seu desagrado com seu olhar ao ver os conspiradores brindando com champanhe. Aqui, no entanto, Poirot se torna um cúmplice ativo e chega a endossar abertamente a conduta dos conspiradores. Apesar de citar em seu discurso final que a questão ficará em sua consciência, Poirot não parece demonstrar nenhum pesar em sua decisão.
Mesmo sendo um remake desnecessário, Assassinato no Expresso do Oriente
acerta no carisma de seu protagonista e no ótimo elenco que dá vida aos
ambíguos e exóticos suspeitos, mas derrapa ao tentar fazer uma discussão rasa sobre a moralidade do crime.
Nota: 6/10
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