Há uma cena no final da animação Ratatouille (2007) em que o personagem
Anton Ego experimenta uma comida feita pela dupla de protagonistas e cada
mordida imediatamente o transporta a um momento passado de sua vida. A analogia
com essa cena é a melhor maneira que tenho para descrever minha experiência com
este Café com Canela, um filme cheio
de sentimento e delicadeza sobre a vida no Recôncavo da Bahia e sobre a
superação do luto.
A trama é centrada em Margarida,
uma mulher que perdeu o filho anos atrás e vive em isolamento. Em paralelo há
também a história de Violeta, uma jovem que vende quitutes pela cidade e cuida
de sua avó adoentada. Essas duas histórias, bem como algumas de pessoas
próximas a essas duas protagonistas, vão aos poucos se cruzando.
A primeira coisa que salta aos
olhos é como o filme acerta no clima da vida no Recôncavo. Com tantas produções
para cinema e televisão que retratam o interior da Bahia e seus personagens com
um viés de mera caricatura ou exotismo, é um alívio ver uma produção que trata
esses indivíduos como seres humanos, com dores, alegrias, com vidas tão banais
que parece que poderíamos simplesmente encontrar com aquelas pessoas na rua ou
ouvir a respeito delas de um conhecido. Essa sensação de verdade está nos
personagens, na maneira como eles falam, na música que remete aos ritmos do
lugar, na beleza com a qual as paisagens são filmadas, nos sons ambientes ou no
senso de comunidade que se constrói entre os personagens. O filme não permite
que se veja o Recôncavo, mas que se sinta como é viver ali.
A atriz Valdinéia Soriano
transmite a dor de Margarida mesmo sem precisar falar. Seu olhar é carregado de
um profundo pesar e sentimento de exaustão, como se ela estivesse exaurida por
sua própria dor. Esse universo interno da personagem é também transmitido pelo
visual de sua própria casa, cheia de poeira, ferrugem, móveis puídos e pintura
descascando, a casa é algo que se deixou se tornar ruína e como Margarida
apenas aguarda seu inevitável fim. A câmera, que quase sempre traz a atriz em
primeiro plano, reforça a sensação de claustrofobia e que ela é uma prisioneira
(ainda que voluntariamente, de certo modo) em sua própria casa.
O som reforça a presença
constante das memórias, com a personagem ouvindo diálogos do passado,
evidenciando como sua mente está fixada nisso, em especial na cena em que
começamos a ouvir um leve burburinho até que Margarida abre uma caixa em seu
armário e o som das conversas aumenta, revelando as fotos contidas na caixa,
como se o passado estivesse clamando pela atenção dela. Margarida e Violeta tem
embates cheios de emoção verdadeira sobre o luto, seguir adiante e a
importância de laços comunitários na superação da dor. Por sinal, o modo como o
filme constrói e aborda esse sentimento de uma comunidade que se apoia
constantemente é sincero e próximo do que realmente acontece em muitas cidades
do interior da Bahia (digo por experiência própria).
Apesar desses temas
"pesados" e da presença de personagens passando por momentos de dor e
desolação, o filme não é uma experiência de mero sofrimento. Há uma leveza no
modo com o qual a trama transcorre, uma impressão que você está recebendo um abraço
cálido e reconfortante de uma pessoa amada e esse calor humano impede que a
experiência seja algo que provoque depressão ou mal-estar. Há também um senso
de humor muito natural que emerge do diálogo entre os personagens, como a
anedota envolvendo um relógio ou o diálogo entre Violeta e o dono de um bar
envolvendo suas coxinhas.
O filme, no entanto, tem sua
parcela de problemas. O início, no qual a montagem passa rapidamente entre
vários personagens parece um pouco truncado e demoramos a entender quem são
cada um desses indivíduos ou qual é exatamente o seu arco. Além disso algumas
cenas soam excessivas ou redundantes a exemplo do diálogo entre Violeta e
Margarida sobre a natureza do cinema. É uma conversa excessivamente didática
que parece querer transmitir a visão do filme sobre a experiência que ele quer
construir, sendo que o filme em si já seria um excelente manifesto sobre o poder
da arte em reconstruir vivências e todos os outros pontos levantados de modo
pouco orgânico entre as duas.
Isso, porém, não diminui a força
e a riqueza emocional de Café com Canela
e a maneira sincera e afetuosa com a qual nos deixa imersos nas vidas e comunidades
do Recôncavo da Bahia.
Nota: 9/10
Esse texto faz parte de nossa cobertura do XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema
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