Faz tempo que penso em iniciar
uma coluna dedicada a falar só sobre filmes lendários por sua ruindade. A
escolha de qual filme teria a "honra" de estrear acabou sendo muito
fácil. The Room, lançado em 2003, é
considerado por muitos o Cidadão Kane
dos filmes ruins. É tão ruim, mas tão ruim, no qual tudo é tal mal concebido,
que se torna absolutamente hilário.
O fenômeno The Room
Se eu tivesse que explicar o
quanto é ruim, provavelmente diria que parece algo feito por um alienígena que
nunca esteve na Terra, nunca teve contato com seres humanos e tentou fazer um
filme a partir do que ouviu outros alienígenas falarem sobre a conduta da nossa
espécie. O resultado é um filme esquisitíssimo no qual ninguém parece se
comportar como uma pessoa de verdade, mas um simulacro equivocado do que um
humano deveria ser, algo tão sem noção que é difícil não rir. O fato de ter se
tornado uma espécie de filme cult nos
últimos anos provavelmente se deve a essa capacidade de gerar risos.
O culto a The Room teria começado quando dois estudantes de cinema passaram
pela única sala de Los Angeles que exibia o filme (o diretor e roteirista Tommy
Wiseau pagava para o cinema manter o filme em cartaz) e perceberam que no
cartaz do longa tinha um aviso de "não devolvemos seu dinheiro" ao
lado de uma crítica que dizia "ver este filme é como levar uma facada na
cabeça".
O aviso atiçou a curiosidade dos
estudantes Michael Rousselet e Gairdner (assim como a minha foi atiçada pela
lendas sobre a ruindade desse filme) que não só assistiram The Room, como também indicaram a colegas. Com o tempo o filme se
tornou febre em certas comunidades cinéfilas dos Estados Unidos, com direito a
exibições à meia noite na qual o público ia fantasiado como os personagens do
filme, recitavam diálogos em voz alta e atiravam colheres e bolas de futebol
americano na tela (explicarei isso mais adiante).
O sucesso, ou infâmia, motivou o
ator Greg Sestero, que interpreta o Mark no filme, a escrever o livro The Disaster Artist no qual fala sobre
sua amizade com Tommy Wiseau e a insólita experiência que foi participar da
realização de The Room (sério, leiam
o livro, é muito bom). O livro de Sestero inclusive despertou o interesse de
algumas pessoas em Hollywood e a história dos bastidores de The Room acabou virando filme pelas mãos
de James Franco, que dirige e protagoniza interpretando Tommy Wiseau. Com o
título de O Artista do Desastre, o
filme chegou a passar aqui no Brasil em alguns festivais, mas ainda não tem
data de estreia no circuito comercial e deve estrear nos Estados Unidos em
dezembro.
Decifrando The Room
Bem, chega de informações
contextuais e vamos direto ao filme. Escrito, dirigido e estrelado por Tommy
Wiseau, a trama de The Room é
centrada no banqueiro Johnny (Tommy Wiseau). Sua noiva Lisa (Juliette Danielle)
o está traindo com seu melhor amigo, Mark (Greg Sestero), e pensa em
abandoná-lo. Ele perde uma promoção no trabalho e aos poucos vai se dando conta
da traição noiva e sua vida começa a desmoronar. A intenção era claramente
fazer um drama sobre a classe média urbana ao estilo das peças escritas por
Tennessee Williams, autor de textos seminais como Um Bonde Chamado Desejo e Gata
em Teto de Zinco Quente, mas falta a Wiseau não só o talento e
sensibilidade crítica de Williams, como também a capacidade de juntar cenas de
maneira coesa e tecer uma trama que faça sentido.
Os eventos mostrados em The Room não seguem qualquer lógica causal.
Informações são dadas e esquecidas momentos depois, personagens tem uma conduta
em uma cena e outra diametralmente oposta na cena seguinte. Muitos personagens
entram e saem da narrativa sem terem feito qualquer diferença na trama e muitas
cenas não possuem propósito algum.
Em um momento Lisa diz estar de
saco cheio de Johnny, mas na cena seguinte se comporta como uma namorada
dedicada, comprando pizza e servindo bebidas para consolá-lo sobre a perda de
uma promoção. Não há um pingo de desdém ou amargura na personagem, é como se a
cena anterior em que ela confessou sua insatisfação nunca tivesse existido. Em
um instante Lisa mente para sua mãe dizendo que Johnny bateu nela para tentar
justificar sua vontade de encerrar o relacionamento, sendo que na cena seguinte
ela exalta o altruísmo de Johnny em pagar o aluguel de Denny (Phillip Haldiman),
esquecendo completamente que minutos atrás acusara o noivo de violência
doméstica, apenas para voltar a acusá-lo em uma cena posterior com sua amiga
Michelle (Robyn Paris). O momento, por sinal, é completamente redundante e
inútil já que Lisa apenas repete o que tinha dito para a mãe, não dando nenhuma
nova informação.
A cena em que Michelle pega Lisa
e Mark no flagra é igualmente redundante, pois Lisa já tinha confessado a ela
seu caso e assim toda cena é uma grande perda de tempo que não agrega coisa
alguma ao filme. Michelle, por sinal, aparece no aniversário de Johnny ao fim
do filme acompanhada por Steven (Greg Ellery), um personagem que nunca tinha
aparecido ou sido citado pela trama, embora cenas anteriores tenham mostrado
ela namorando Mike (Mike Holmes). De onde saiu Steven? Porque Steven se
comporta como se fosse íntimo de Lisa e Johnny? Ele já os conhecia? O que
aconteceu com Mike? Isso é um mistério que provavelmente nem Sherlock Holmes
conseguiria resolver.
Posteriormente Johnny confronta
Lisa sobre a mentira da violência doméstica e ela diz que considera não casar
com ele. Era de se imaginar alguma tensão fosse sair disso, mas Lisa
simplesmente sobe para seu quarto e Johnny diz que a ama, ignorando tudo que
acabou de acontecer. É nessa cena que está um dos diálogos mais hilários do
filme quando Johnny simplesmente berra, sem razão alguma, "você está acabando comigo!" ("you're tearing me apart!" em inglês). A fala é claramente inspirada em um
diálogo idêntico de Juventude Transviada
(1955) no qual o personagem interpretado por James Dean diz isso aos pais.
Wiseau era um grande fã de James Dean e provavelmente inseriu essa mesma fala
em seu filme para tentar ser como seu ídolo, a questão é que o diálogo e a
interpretação de Wiseau destoam completamente do restante da cena. Na verdade a
atuação de Wiseau destoa de qualquer conduta humana básica, mas isso será
abordado mais adiante.
A trama é cheia de eventos que
não repercutem. Em uma cena a mãe de Lisa, Claudette (Carolyn Minott) diz ter
câncer e isso é completamente esquecido no restante do filme. O modo casual e
descompromissado com o qual Claudette dá essa informação grave para a filha
mais parece que ela está admitindo ter encontrado um furúnculo na bunda do que
uma doença com sério risco de morte. Outro acontecimento bizarro é o confronto
entre Denny, vizinho que Johnny considera como um filho adotivo, e o traficante
Chris-R (Dan Janjigian, provavelmente o ator mais convincente de todo o filme)
no terraço do prédio. Chris-R (que raio de nome é esse?) saca uma arma para
Denny e exige seu dinheiro (porque ele faz isso no terraço?), mas é rapidamente
detido por Johnny e Mark. Denny admite ter tido problemas com drogas (quais?
Isso nunca é especificado), mas isso não volta a ser mencionado em qualquer
outro momento, tampouco as dívidas dele com o tráfico vão trazer qualquer repercussão
no restante do filme.
As ações dos personagens também
não parecem seguir nenhuma lógica. Johnny ouve Lisa admitir para a mãe que o
está traindo e ele decide colocar um gravador na sala. Se ele já tinha
testemunhado a confissão, qual o motivo de precisar gravá-la dizendo aquilo? Se
ele queria confrontá-la com a confissão bastava dizer que tinha ouvido tudo,
não precisava de uma gravação. Quando ele finalmente a confronta com a gravação
no fim do filme, o dispositivo já não tem qualquer valor uma vez que o próprio
Mark e Lisa já tinham admitido o caso.
Em uma cena no início do filme
Denny confessa que ama Lisa e tem vontade de beijá-la e Tommy não parece nem um
pouco abalado ou impactado de que seu "filho adotivo" tenha desejos
sexuais em relação à sua noiva, o que é bem bizarro. O mesmo pode ser dito
sobre a cena em que Mark confessa seu caso com Lisa para Peter (Kyle Vogt), um
amigo em comum dele e Johnny, ao ser confrontado por ele. Peter, por sinal, não
parece nem um pouco abalado quando Mark o arrasta para o parapeito do terraço e
ameaça jogá-lo de lá. Nada disso tem qualquer desenvolvimento porque Peter só
volta a aparecer em uma cena na qual ele e outros personagens brincam com uma
bola de futebol americano.
O filme é cheio de cenas inúteis
com os personagens brincando com bolas de futebol americano, jogando a bola uns
para os outros. Em uma delas Mark derruba Mike, um outro amigo dele e Johnny, e
Mike torce o pé. A queda de Mike é hilária de tão tosca e o machucado dele
nunca mais é mencionado. Em outro momento, os personagens estão no apartamento
de Johnny vestindo smokings e
resolvem brincar com a bola do lado de fora. Qual o sentido disso? Porque eles
fazem isso vestindo smokings? Porque
eles estavam vestindo smokings em
primeiro lugar? Ignorando isso ainda há a esquisitice do filme tratar o fato de
Mark chegar sem barba à casa de Tommy como um grande momento para o personagem.
Qual o motivo disso ser um grande momento? Ele tinha algum trauma em relação à
barba? Tinha feito uma promessa de não cortá-la?
Uma das piores cenas de sexo da história do cinema |
As cenas de sexo e as personagens femininas
Falando em sexo, o filme é cheio
de cenas de sexo que parecem ter sido pensadas por alguém que nunca transou na
vida. Pontuadas por um pop romântico
super brega que parece saído de um pornô softcore
antigo, as cenas de sexo são ocasionalmente anatomicamente incorretas, já que
em duas (na verdade uma, já que a segunda cena reutiliza imagens da primeira
como se ninguém fosse perceber) delas, pelo posicionamento dos atores, Johnny
parece estar penetrando o umbigo de Lisa. Talvez o protagonista tenha algum
fetiche sexual por umbigos, talvez os atores estivessem desconfortáveis e por
isso acabaram naquela posição esquisita, talvez eu esteja desperdiçando tempo
precioso da minha vida com ilações sobre a representação do sexo em filmes
ruins, sei lá. São, no entanto, cenas de sexo mais divertidas de ver do que as
da franquia Cinquenta Tons de Cinza.
Se formos prestar atenção nas
personagens femininas de The Room é
possível perceber um padrão bem claro na maneira como elas são apresentadas. As
mulheres do filme passam o tempo todo fofocando e falando mal de outras
pessoas. Suas conversas giram em torno de homens e dinheiro, fazendo-as soar
como criaturas fúteis e aproveitadoras. Por outro lado, imagino que reclamar da
caracterização de qualquer grupo social em um filme que sequer consegue
estabelecer um elo lógico/causal entre suas cenas é como reclamar com um
elefante por ele não falar mandarim.
Isso, no entanto, permite
perceber que não há motivação alguma para Lisa trair Johnny. Ela fala que o
noivo é entediante, que quer mais da vida, mas o que a deixa exatamente
entediada? Que outros planos ela tem? Parece que ela o trai por algum tipo de
maldade nata. A personagem deveria ser uma mulher extremamente sedutora, capaz
encantar qualquer homem que encontre, e também uma hábil manipuladora. Nada
disso, porém, está presente na atuação de Juliette Danielle, faltando-lhe
malícia, desfaçatez, engenhosidade ou mesmo a impressão de alguém amargurada
por uma relação infeliz.
A interpretação de Tommy Wiseau
O trabalho de Danielle, no
entanto, soa como algo digno de prêmios perto do que é a interpretação de Tommy
Wiseau. Vê-lo atuando é como ver a barata Edgar de MIB: Homens de Preto (1997), uma criatura que superficialmente
parece um ser humano, mas cuja conduta sequer chega perto de um. Todas as falas
dele são ditas com extrema artificialidade, como se ele estivesse lendo em um
cartaz (e segundo o livro do Greg Sestero isso que aconteceu em muitas cenas) e
considerando que o próprio Wiseau escreveu o roteiro do filme, isso é uma
ocorrência quase que incompreensível. Como o sujeito não consegue lembrar de
palavras que ele mesmo escreveu?
Ignorando a maneira esquisita com
a qual ele diz suas falas, há também a questão da maneira como ele reage a
outros personagens. Em uma cena Mark conta a ele uma história sobre uma mulher
que tinha muitos amantes e foi espancada pelo namorado indo parar no hospital
gravemente ferida. A reação do personagem de Wiseau? Ele ri copiosamente e diz
"boa história Mark". Que tipo de pessoa se acaba de rir ao ouvir um
relato de violência como esse? Seria Johnny secretamente um sociopata? Será que
Wiseau estava tentando fazer uma crítica ao capitalismo especulativo dos bancos
que acaba desumanizando seus funcionários? Ou Wiseau simplesmente não tem a
menor noção de como as pessoas interagem umas com as outras? Praticamente toda
vez que ele está em cena há uma fala ou reação tão insólita que é digna de
virar meme.
Até mesmo a cena final de Johnny,
na qual ele destrói seu apartamento ao ser deixado por Lisa é bastante
artificial. Em boa parte das tomadas Wiseau balança seus braços como um
daqueles bonecos de ar de postos de gasolina e sequer consegue convencer da
raiva descontrolada de seu personagem. Se a cena era pra criar empatia por
Johnny, ela fracassa miseravelmente assim que o protagonista começa a encoxar
vigorosamente o vestido vermelho que deu para Lisa no começo do filme. Diante
de algo tão bizarro e involuntariamente cômico, o suicídio do personagem
segundos depois soa como um grande alívio, já que finalmente percebemos que
tudo está acabando.
Os defeitos técnicos
O filme é ainda marcado por uma
série de questões técnicas. Em muitas cenas há um claro problema na
sincronização do som, que não acompanha o movimento da boca dos personagens. Em
outras, como a cena da floricultura, fica evidente que os diálogos foram
redublados em pós produção e as falas foram ditas com uma rapidez enorme para
poderem caber no tempo das imagens já gravadas. O chroma key usado nas cenas do terraço é completamente artificial e
fica evidente que tudo foi filmado diante de uma tela verde. Há também uma
série de questões em relação a figurino e set
design.
O mistério das colheres |
Em Síntese
The Room acaba sendo um ótimo exemplo do que não se deve fazer
durante a realização do um filme. Seu olhar sobre as interações humanas é tão
errado que se torna fascinante, seu texto é tão sem nexo que não seria
equivocado dizer que sua totalidade é um grande furo narrativo. É tudo tão
bizarro e desconexo que desconfio que se o filme tivesse sido vendido como uma
obra surrealista e enigmática como os trabalhos de David Lynch talvez tivesse
tido algum sucesso em seu lançamento. É um filme tão mal concebido e cheio de
erros inacreditáveis que acaba sendo irresistivelmente divertido, tudo graças à
visão singular (porque literalmente mais ninguém faria algo assim) de Tommy
Wiseau.
Como não achei um trailer oficial, fiquem com essa seleção de "melhores" momentos:
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