terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Crítica - Atlanta: 1ª Temporada

Análise  Atlanta: 1ª Temporada


Review  Atlanta Season 1
Atlanta é uma série esquisita. Na superfície parece ser mais uma série sobre um jovem à deriva que procura seu lugar no mundo e tenta fazer sucesso no disputado meio artístico, mas estruturalmente faz muitas escolhas pouco usuais que nos dão uma constante sensação de estranhamento. A série, no entanto, usa esse estranhamento a seu favor e é sua esquisitice que a faz se destacar.

Na trama, Earnest "Earn" Marks (Donald Glover, também roteirista e criador da série) é um jovem que largou a faculdade, está sem dinheiro e sem ter onde morar, dormindo de favor na casa da namorada Vanessa (Zazie Beets, que será a Domino em Deadpool 2), com quem tem uma filha. Ele vê uma oportunidade de mudar sua vida quando seu primo Alfred (Brian Tyree Henry) começa uma carreira no rap sob o nome de Paper Boi e se prontifica a trabalhar com ele como seu agente. Assim Earn e Alfred tentam ascender no cenário do rap em Atlanta.

Boa parte do estranhamento se dá pelo fato de uma grande maioria dos episódios começarem in media res (literalmente "no meio das coisas" em latim), com os personagens já em meio a alguma ação cujo contexto não é dado ao espectador. Essa escolha ajuda a nos desarmar de nossas expectativas, nos deixando sem saber o que esperar ou sem ter noção do que virá a seguir e essa falta de expectativa faz as ocorrências inesperadas e personagens insólitos que surgem o tempo todo ainda mais divertidos.

Em um episódio Earn leva Paper Boi a um jogo de basquete beneficente e lá ele se envolve em uma disputa com um artista pop negro chamado Justin Bieber. Ele se comporta de maneira bem semelhante ao Bieber do mundo real, mas a série nunca explica se esse personagem é o análogo de Bieber no universo da série ou se é simplesmente alguém com o mesmo nome, dando uma aura surreal ao personagem. É possível entender a presença do personagem como um comentário sobre apropriação cultural, já que o Bieber real reproduz muito do modo de se vestir e falar da cultura negra dos EUA, sobre o modo como a mídia julga artistas negros e brancos de maneira diferente ou talvez tudo seja uma grande trollagem do roteirista Donald Glover que está rindo às custas de todo mundo que tenta encontrar um significado maior no "Bieber negro" para além de uma bem-humorada subversão de expectativas.

A série também brinca com seu formato, a exemplo do episódio da B.A.N (Black American Network, uma paródia do canal real B.E.T, Black Entertainment Television) que se passa todo como se estivéssemos assistindo a um programa desse canal, com direito à exibição de hilários comerciais falsos. O programa em questão traz um debate entre Paper Boi e uma ativista LGBT que acusa o rapper de transfobia em suas letras e funciona como uma crítica divertida ao fato de que muitos desses talk shows ou programas de debates tem mais interesse em estimular barracos e desentendimentos entre os convidados do que fomentar uma conversa no qual os dois lados consigam se entender e chegar a um consenso.

Essas constantes tentativas de subverter as expectativas e entregar eventos inesperados, no entanto, muitas vezes resulta em algumas subtramas sendo deixadas de lado e nunca sendo plenamente explicadas como o tiroteio que acontece no primeiro episódio. Paper Boi matou alguém? Ele vai ser indiciado? Ao longo da temporada inteira não há uma explicação do que foi aquilo ou se haverá qualquer impacto sobre os personagens. Essa falta de resolução de alguns arcos, embora coerente com a proposta de mexer com as percepções do público, certamente incomoda em alguns momentos.

Quem melhor resume essa verve bizarra, inesperada e subversiva da série é o personagem Darius (Lakeith Stanfield), o melhor amigo de Paper Boi. Seus diálogos muitas vezes descambam para o puro nonsense e ao longo do meu tempo com a série não consigo decidir se ele é um completo imbecil ou se, de algum modo, ele é um gênio cuja inteligência está além de nossa compreensão. Ele constantemente se envolve em esquemas bizarros e desnecessariamente complicados como no episódio que ele tenta conseguir dinheiro para Earn a partir de uma espada comprada em uma loja de penhores e se envolve em uma série de trocas absurda. O momento mais divertido do personagem talvez seja sua ida a um estande de tiro e usa um alvo com a imagem de um cachorro.

A imagem dele atirando em um cachorro de papel já é insólita o bastante em si mesma para gerar risos e até preocupação (Darius está praticando para atirar em um cachorro de verdade?), mas a confusão que surge a partir disso é ainda mais engraçada. As pessoas ao redor de Darius se revoltam com o que ele está fazendo e o personagem é praticamente expulso do lugar sob a mira de uma arma enquanto protesta que ninguém ali se ofende com o fato daquelas pessoas estarem atirando em alvos de pessoas negras e muçulmanas.

Com seu senso de humor absurdo e subversivo, a série constantemente comenta sobre uma série de tópicos da contemporaneidade como a superficial e vazia cultura da ostentação no mundo do entretenimento (no episódio da boate), o modo como muitos youtubers e blogueiros se importam mais com curtidas e compartilhamentos do que em produzir um conteúdo relevante, criando "tretas" virtuais apenas para ganhar notoriedade, ou o racismo casual (e ocasionalmente escancarado) com o qual a população negra convive diariamente. Apesar de todo seu senso de humor, a série também acha espaço para mostrar o afeto verdadeiro que Earn tem pela filha e como ele e Vanessa, apesar de dizerem que estão juntos por causa da filha e por ele não ter onde morar, realmente se gostam e isso ajuda que não vejamos o protagonista como um mero parasita que vive às custas da namorada, mas alguém que ao seu modo tenta construir algo para si e para elas.

Esse equilíbrio entre drama, comédia, esquisitice e absurdo é melhor demonstrado no episódio que encerra a temporada. Tudo começa com a busca por uma jaqueta perdida que se desenvolve em algumas situações absurdas com Earn, Paper Boi e Darius indo parar no meio de uma batida policial e no fim revela que o Earn estava procurando era a chave que ele pensava estar na jaqueta. Descobrimos, então, que a chave era do galpão no qual Earn agora morava e a tomada final dele em sua minúscula  residência olhando as notas de cem que recebeu como pagamento de Paper Boi é um ótimo encerramento para seu arco. Se no início da série ele estava sem casa, sem dinheiro e sem emprego, ao fim da temporada ele consegue aquilo que buscava. É um momento singelo, mas cheio de significado simbólico para o personagem que conseguiu aquilo que almejava ainda que não tenha resolvido todos os seus problemas. O episódio inteiro resume a visão da série de como a vida é uma série de pequenos e por vezes insólitos incidentes e como mesmo o mais banal dos eventos pode ser cheio de significado.

Essa primeira temporada de Atlanta conquista pelo seu senso de humor excêntrico que usa a esquisitice em seu favor ao mesmo tempo que tece comentários contundentes sobre a sociedade contemporânea e tece uma narrativa agridoce sobre um jovem que tenta dar um rumo à sua vida.


Nota: 9/10 

Trailer

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