segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Crítica - O Sacrifício do Cervo Sagrado

Análise O Sacrifício do Cervo Sagrado


Review O Sacrifício do Cervo Sagrado
Este O Sacrifíicio do Cervo Sagrado, novo trabalho do cineasta grego Yorgos Lanthimos (responsável pelo excelente O Lagosta), não é um filme fácil de assistir. Ele já deixa claro sua natureza incômoda e perturbadora desde sua primeira cena na qual vemos, com enorme detalhamento gráfico, uma cirurgia cardíaca sendo finalizada conforme o peito aberto do paciente, exibindo um coração pulsante, é fechado e suturado. Isso já é um sinal de que acompanhar o longa não será uma jornada fácil e o que acontece daí em diante realmente cumpre essa promessa.

A trama acompanha Steven (Colin Farrell), um cardiologista de sucesso cujo estilo de vida aparentemente corresponde ao de uma família de comercial de margarina. Apesar de tudo ser perfeito na aparência de sua exuberante casa, a relação entre ele, a esposa, Anna (Nicole Kidman), e os filhos soa estranhamente gélida. Adicionando a sensação de estranheza em relação a Steven está a amizade que o médico tem com o adolescente Martin (Barry Keoghan).


Considerando a natureza tímida e retraída de Martin, inicialmente considerei que Steven pudesse ser um predador sexual e o garoto fosse uma possível vítima, mas quando somos informados que o pai de Martin morreu na mesa de operação de Steven tudo parece se encaixar. O médico provavelmente estaria buscando purgar sua culpa levando o menino para almoçar ou lhe dando presentes caros. Ainda assim, a relação entre eles é pontuada por uma estranheza e tensão subjacentes, um sentimento construído principalmente pela música presente nas cenas que observa tudo com acordes agudos e sinuosos conforme as intenções do médico ou do garoto vão ficando difíceis de compreender.

O estranhamento do primeiro ato logo dá lugar a tensão e temor quando o filme finalmente revela o que está em jogo entre Martin e Steven. Dar detalhes sobre isso seria estragar a experiência de quem ainda não viu, mas o que se segue é um mergulho sombrio sobre noções de culpa, responsabilidade e reparação a partir do momento que a família de Steven começa a cair doente e ele é confrontado com uma decisão difícil. As coisas progridem como uma espiral de eventos soturnos e cheios de desespero, nos quais o filme não se preocupa em poupar o espectador da severidade das consequências.

Tal como outros filmes de Lanthimos, não há uma explicação literal para o que está acontecendo e tudo opera em um nível bastante simbólico, então não esperem que as coisas sejam plenamente explicadas. Isso não significa, no entanto, que o diretor não pontue suas intenções com aquela história. Na verdade, ele deixa rastros bastante evidentes do que está tentando fazer. O principal indício está em uma conversa entre Steven e o diretor da escola de seus filhos na qual o diretor fala o quanto eles são bons alunos e que a filha de Steven, Kim (Raffey Cassidy), tirou nota alta em um trabalho sobre a tragédia de Ifigênia.

Na mitologia grega Ifigênia era filha do rei Agamenon. Um dia Agamenon atraiu para si a fúria dos deuses ao matar um cervo sagrado (daí o título do filme) durante uma caçada. Os deuses fizeram os ventos pararem de soprar e os navios do rei ficaram presos no porto. Para que os ventos voltassem a soprar, Agamenon precisou oferecer sua filha Ifigênia em sacrifício para a deusa Artemis.

A filiação da obra aos temas de sacrifício e martírio também se verifica pelo seu uso de música não original, recorrendo a peças de cunho sacro de compositores clássicos como o Stabat Mater ("estava a mãe" em latim) de Franz Schubert, que aborda o sofrimento de Maria durante a crucificação de Cristo, ou o coro Herr, Unser Herrscher de Johann Sebastian Bach, parte de sua peça que narra a Paixão de Cristo segundo o discípulo João. O uso dessas referências não só explicita o duro calvário vivido pelos personagens como também serve de brutal lembrete sobre a história da humanidade e como nossos progressos, avanços e confortos foram conquistados por meio de sangue e sofrimento alheio.

Para além de toda essa construção estética e conceitual, o filme se apoia também em ótimas performances de seu elenco. Colin Farrell traz um enorme senso de autoimportância para seu personagem, falando de maneira pausada e excessivamente impostada como se o médico considerasse que cada palavra saída de boca fosse algo tão importante e solene que precisa ser declamado como um diálogo shakespeariano (por sinal, autor de muitas peças cheias de sacrifício e morte). Enquanto isso Nicole Kidman faz de Anna uma mulher tão guiada pelo pragmatismo que em nenhum momento estranha ou questiona o elemento absurdo ou sobrenatural que envolve sua família. A jovem Raffey Cassidy traz um importante senso de graciosidade e inocência a Kim, atributos necessários que eventualmente nos compadeçamos da garota.

Quem mais surpreende, no entanto, é o jovem Barry Keoghan em uma performance que me lembrou bastante o trabalho de Joel Edgerton em O Presente (2015). Seu Martin é esquisito e socialmente inepto ao ponto de simultaneamente solicitar e repelir nossa empatia conforme flutuamos entre a incerteza dele ser apenas um coitado ingênuo ou um sádico implacável.

Com um elenco competente e uma direção que não poupa o espectador ao confrontá-lo com noções morais complexas e de consequências sombrias, O Sacrifício do Cervo Sagrado é um conto estranho e soturno sobre culpa e responsabilidade.

Nota: 9/10


Trailer

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