A primeira temporada de American Crime Story me pegou de
surpresa ao usar a história real do julgamento do ex-jogador de futebol
americano O.J Simpson para fazer uma análise das obsessões e conflitos
subjacentes da sociedade estadunidense. Imaginei que esta segunda temporada,
baseada no assassinato do estilista Gianni Versace, também fosse usar o crime
como um ponto de entrada para o exame dos problemas sociais dos Estados Unidos
e de certa forma é o que acontece, ainda que a temporada não tenha a mesma
força e contundência do seu ano de estreia.
A narrativa começa quando Gianni
Versace (Edgar Ramirez) é assassinado na porta de sua casa pelo jovem Andrew
Cunanan (Darren Criss), um rapaz com uma admiração pouco saudável pelo estilista. A
partir de então a trama passa a acompanhar a caçada por Cunanan ao mesmo tempo
em vai voltando no tempo para tentar entender as ações e motivações do
assassino. Apesar do nome Versace no título, o estilista e sua família são
meros coadjuvantes, aparecendo muito pouco ao longo da temporada. A história
que a temporada conta pertence mais a Andrew do que a sua célebre vítima e
embora eu entenda que o uso do nome Versace é uma decisão de cunho comercial,
afinal ninguém nem sabe ou lembra do nome de Cunanan e colocá-lo no título
provavelmente não chamaria tanta atenção. Ainda assim não consigo deixar de
sentir que o título é relativamente desonesto com sua audiência e cria uma
expectativa equivocada no espectador.
A decisão em apresentar a trama
em uma cronologia invertida é outra escolha questionável desta temporada.
Quando esse tipo de estrutura é usada em um filme, como Amnésia (2001) ou Irreversível
(2002), cada segmento está há minutos de distância um do outro e não é difícil
organizar tudo mentalmente e entender a cronologia do que acontece, bem como as
relações entre os eventos e personagens. Em uma série exibida semanalmente, no
entanto, as coisas não ficam tão frescas na memória entre um episódio e outro e
muitas vezes eu demorava a reconhecer um personagem ou referência a algo porque
era difícil me lembrar de tudo que aconteceu antes (mas cronologicamente
depois, dentro daquele universo) para ter uma ideia clara do que a série queria
dizer sobre seus personagens. Se fosse algo feito para streaming, com a temporada inteira disponibilizada de vez, talvez
isso fosse menos problemático, mas do modo como é apresentado, fica mais
confuso do que deveria.
Inclusive, não existe uma
necessidade real para essa inversão temporal. Se em filmes como Amnésia (2001) a reversão temporal era
essencial para que a obra transmitisse suas ideias sobre a dependência da
memória na construção da identidade e como a realidade é uma construção
subjetiva, aqui o jogo com a cronologia não parece ter qualquer motivação com a
mensagem a ser comunicada. Todas as ideias sobre a tacanha homofobia que governava
a sociedade estadunidense e a transformação de Cunanan em serial killer culminando na morte de Versace poderiam ser contadas
cronologicamente sem grandes perdas.
Se a temporada anterior lidou com
questões como feminicídio, racismo e o culto às celebridades, essa temporada é
quase toda focada em uma espécie de antropologia da comunidade LGBT
estadunidense nas décadas de 80 e 90. A série mostra como o preconceito
obrigava os gays a se manterem no armário, evitando assumir sua sexualidade, já
que fazer isso não só significava atrair a ojeriza da sociedade como também
trazia ruína profissional, a exemplo do que acontece com um militar que cruza o
caminho de Andrew. Ao serem obrigados a viver escondidos e se relacionarem com
estranhos em encontros casuais, essa população ficava ainda mais vulnerável a
ser vítimas de pessoas como Andrew. A homofobia também era uma das razões pelas
quais Cunanan foi capaz de operar tantos anos impune, já que a polícia não se
importava muito com um serial killer que
matava gays, denotando como eles eram considerados cidadãos de segunda classe,
cujas vidas eram tratadas como menos importantes.
A questão é que com apenas uma
pauta temática ao longo de boa parte da temporada, com o tempo as coisas
começam a ficar redundantes, deixando a impressão de que o roteiro já esgotou o
que tinha a dizer sobre o tema e fica caminhando em círculos, sem muito mais a
acrescentar. Nos dois últimos episódios a série amplia um pouco seu escopo
temática ao lidar com a ideia do "sonho americano" de enriquecer
rápido e fácil durante seu exame da complicada relação de Andrew com o pai,
Modesto (Jon Jon Briones), mas até chegar aí há um miolo relativamente
repetitivo.
Se tem algo que funciona de
maneira irrepreensível de modo consistente ao longo da temporada é o trabalho
de Darren Criss como Andrew Cunanan. Em uma daquelas performances que definem
uma carreira, Criss concebe Cunanan como um jovem inteligente, engenhoso, capaz
de manipular qualquer um, mas ainda assim extremamente vulnerável, carente e incapaz
de lidar com a rejeição. Seu Cunanan remete ao Tom Ripley interpretado por Matt
Damon em O Talentoso Ripley (1999) no
sentido que é um sujeito tão desesperado por uma vida de luxo e por ser amado
por todos ao seu redor que acaba se tornando inconveniente para qualquer um que
lhe dê atenção. Quando as pessoas com quem se envolve eventualmente se cansam
da presença intrusiva de Andrew, ele as rechaça com violência, matando-as para
não ser rejeitado. Sua escolha de tirar suas vítimas do armário depois de
matá-las, deixando as revistas pornô ou brinquedos sexuais dos mortos perto dos
cadáveres é a maneira que Andrew encontra para causar sobre suas vítimas, mesmo
depois de mortas, a mesma rejeição que ele crê ter sido submetido, punindo-as
por sua recusa em assumir o afeto que sentiam por ele.
Ao observar a relação de Andrew
com o pai, a série também permite que compreendamos como ele criou para si essa
impressão de ser especial e de que merece que todos lhe deem tudo de melhor.
Mimado pelo pai em detrimento dos demais irmãos e recebendo dele o discurso de
que era alguém extraordinário, mesmo sem ter feito nada para merecer esse
tratamento, Andrew segue pela vida achando que merece afeto e riqueza só por
ser ele mesmo, logicamente não sendo capaz de lidar com a frustração da
rejeição. Apesar de nos dar razões para entender como Cunanan se tornou esse
assassino serial, a narrativa não chega a exatamente pintá-lo como uma vítima
ou um anti-herói, exibindo plena consciência da monstruosidade de seu
protagonista e como suas ações destruíram as vidas de inocentes que nunca
causaram mal a ninguém, com muitos deles inclusive lutando para deixar um
impacto positivo no mundo.
Além do trabalho de Darren Criss,
há de se destacar também a performance de Finn Wittrock (que interpretou o vilão de American Horror Story Freak Show) como Jeffrey Trail, uma
das vítimas de Andrew. Trail era um militar gay que nunca tinha saído do
armário por medo de perder sua carreira, mas quando presencia atos explícitos
de homofobia contra outros colegas de farda, fica dividido entre fazer a coisa
certa e denunciar o preconceito da corporação ou se manter calado para manter
intacto seu sonho de trabalhar nas forças armadas. Wittrock é hábil em
construir tanto o conflito interno do personagem quanto seu sentimento de perda
e frustração depois que ele leva suas denúncias para a imprensa e é levado a
deixar seu trabalho. O ator nos permite sentir a dor e amargura de alguém que
foi negado acesso ao seu sonho simplesmente por conta de sua sexualidade.
Como o personagem que dá o título
à temporada, Edgar Ramirez tem pouco a fazer como Gianni Versace, já que o
texto lhe dá muito pouco tempo de tela. Seu único momento interessante ocorre
lá pela metade da temporada quando a narrativa explora a decisão dele em
assumir publicamente sua sexualidade e como, mesmo para alguém na posição de
riqueza e influência dele, isso representava um grande risco profissional.
Mesmo com um tempo também reduzido, Penelope Cruz consegue ser mais marcante
com sua Donatella Versace, mostrando a irmã do estilista como alguém rigidamente
pragmática, que mesmo em seu luto e tristeza se mantém firme para preservar o
controle da empresa e do legado criado por seu irmão.
Apesar de uma estrutura narrativa
desnecessariamente confusa e ocasionais redundâncias na construção de seu
principal argumento, American Crime
Story: O Assassinato de Gianni Versace funciona pela performance intensa de
Darren Criss e a contundência de seu olhar sobre as consequências da homofobia. Não
chega a causar o mesmo impacto que O Povo
Contra O.J Simpson, mas não deixa de ser competente.
Nota: 8/10
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