A primeira temporada de Jessica Jones acertava na exploração dos
traumas de sua protagonista e na criação de um vilão fascinante e ameaçador. Essa
segunda temporada aprofunda seu mergulho na mente traumatizada de Jessica
(Krysten Ritter) e, embora tenha bons momentos, não se sai tão bem quanto a
anterior. Antes de prosseguirem na leitura, aviso que o texto a seguir contem
SPOILERS.
A trama começa repercutindo os
eventos da temporada anterior, com Jessica precisando lidar com sua consciência
após ter matado Kilgrave (David Tennant). Ela também precisa lidar com os
traumas do seu passado, em especial com o acidente que matou sua família e a
fez ser usada como cobaia pela sombria organização IGH. Ao lado de Trish (Rachael
Taylor), Jessica investiga o seu passado para tentar finalmente cicatrizar
velhas feridas.
Assim como na temporada anterior,
Jessica continua sendo uma personagem fascinante. É possível ver nela um grande
potencial para fazer coisas boas, mas personagem já perdeu tanto, já passou por
tantos abusos e já ultrapassou tantos limites éticos que não consegue acreditar
em si mesma e em sua capacidade de se relacionar com outras pessoas. Nesse
sentido, Krysten Ritter é ótima em nos fazer perceber, mesmo em pequenos
gestos, a carência, solidão e problemas de abandono da personagem. Um exemplo é
na leve expressão de tristeza que precede o sorriso dado por ela ao ouvir a
notícia do noivado de Trish, como se antes de ficar feliz pela irmã Jessica
primeiro pensasse que seria mais uma pessoa a abandoná-la e se ausentar de sua
vida.
Da mesma maneira que a segunda temporada de Demolidor, a série
demora um pouco para apresentar uma antagonista clara a Jessica, o que faz as
coisas parecerem um pouco arrastas do início. Uma vez que Alisa (Janet McTeer)
é apresentada, no entanto, a trama engrena ao usar a personagem como um reflexo
dos problemas psicológicos de Jessica, seja em relação a sua dificuldade em
controlar seu temperamento, seja em relação ao trauma não superado da perda da
família.
Há uma certa natureza abusiva ou
tóxica na relação entre Jessica e Alisa. Ao mesmo tempo em que Jessica possui
um claro afeto por Alisa, já que ela representa o último vínculo que a
protagonista tem com o passado e a própria Alisa tem um afeto inabalável por
Jessica, a relação entre as duas está claramente fadada à tragédia pelo fato de
Alisa não ter controle sobre si mesma ou seus poderes (um duro lembrete a
Jessica do que ela pode se tornar). Jessica sabe disso, mas permanece ao lado
de Alisa mesmo quando ela lhe causa problemas, a machuca ou machuca próximas a
ela. Jessica demonstra saber tudo isso e ainda assim resiste a cortar o vínculo
com Alisa justamente por já ter perdido gente demais, por ser sozinha demais,
carente demais. Não é à toa que a abrupta eliminação de Alisa no episódio final
da temporada é tão desoladora e impactante para Jessica.
No papel, Alisa deveria ser uma
personagem tão rica e complexa quanto Jessica, mas a interpretação cheia de
exageros de Janet McTeer impede que a antagonista seja tão interessante quanto
deveria. Usando o que eu chamo de "método Nicolas Cage", a atriz
varia entre a absoluta calma e o absoluto descontrole sem qualquer nuance entre
esses dois extremos e a personagem termina como uma caricatura exagerada ao
invés de alguém interessante. Deveríamos nos compadecer por ela da mesma forma
que o fazemos com personagens como Bruce Banner ou Bucky, ambos igualmente
vítimas de uma condição que lhes tira o controle sobre si mesmos, mas Alisa
pende tanto para o excesso que é difícil forjar essa mesma conexão. A trama
também traz Kilgrave de volta em determinado momento, usando-o com inteligência
e de uma maneira que não sabota sua morte na temporada anterior. Na verdade, a
presença do personagem serve como um duro lembrete para Jessica de que as
marcas do abuso sofrido não desaparecem com tanta facilidade.
Trish, por sua vez, luta contra
seus próprios sentimentos de insegurança, inadequação e impotência, se
agarrando desesperadamente a qualquer chance que possa lhe dar o poder que ela
tanto almeja para fazer a diferença. Essa tentativa de tomar o controle de sua
vida a faz agir impulsivamente e tomar decisões questionáveis, uma delas inclusive
com potencial de arruinar sua relação com Jessica para sempre. Ela também
precisa lidar com a dificuldade de ser levada à sério como jornalista,
constantemente sendo estimulada a deixar de lado notícias mais sérias para
falar de moda e coisas supérfluas. Esse arco seria uma ótima oportunidade para
falar de machismo no ambiente de trabalho, mas a trama não se detém sobre o
tema por muito tempo.
Quando a série não mantém seu
foco sobre os problemas de Jessica ou Trish, por outro lado, tudo desmorona.
Tal como na temporada anterior, os vizinhos de Jessica mudam de personalidade a
cada episódio. O zelador Oscar (J.R Ramirez) detesta Jessica na primeira vez
que a vê e não quer que ela leve a polícia ao prédio de jeito nenhum por conta
de seu passado criminoso, mas alguns episódios depois ele próprio sugere que
Jessica entre em contato com a polícia. É curioso, inclusive, que uma série tão
preocupada com representação feminina construa a ex-esposa de Oscar como uma
megera histérica e irracional disposta até mesmo a sequestrar o próprio filho
só para punir o ex-marido.
Malcolm (Eka Darville) aceita
silenciosa e passivamente as provocações e comentários de menosprezo de
Jessica, mas quando ele comete um erro verdadeiramente grave que põe todos em
risco e Jessica tem toda razão em reclamar, de repente o personagem decide que
esse momento, aquele que ele tinha menos vantagem moral para reclamar, é aquele
no qual não irá aceitar os xingamentos da protagonistas. Deveria ser um momento
de tomada de atitude e evolução por parte dele, deveria ser uma triste ruptura
entre os dois personagens, mas ao invés disso Malcolm soa como uma babaca
estúpido e imaturo. Igualmente incoerente é o investigador Pryce Cheng (Terry
Chen). No início da temporada ele enche a boca para dar uma lição de moral em
Jessica sobre seu temperamento violento e ímpeto homicida, mas alguns episódios
depois ele próprio resolve agir impulsivamente e tenta matar Alisa (e Jessica)
por conta própria ao invés de comunicar as autoridades ou mesmo tentar forjar
evidências por algum crime. A trama tenta vendê-lo como uma sujeito esperto e
ardiloso, mas ao longo da temporada tudo que o personagem consegue é falhar
ridiculamente em tudo que tenta fazer, nos fazendo indagar como alguém tão
estúpido e obtuso conseguiu obter algum renome em seu campo de atividade.
A atriz Carrie-Anne Moss é ótima
em construir a espiral de desespero e descontrole que acomete a sempre fria e
contida Jeri quando ela recebe o diagnóstico de uma doença grave, mas o talento
de Moss não consegue sozinho afastar a sensação de que essa subtrama inteira é
uma enorme perda de tempo por ela mal se conectar com o restante dos eventos da
série. Além disso há o problema que esse arco leva a personagem do nada ao
lugar nenhum, com Jeri terminado como a mesma pessoa cruel e egocêntrica que
começou a temporada, não passando por qualquer tipo de aprendizado ou
transformação.
Apesar dos problemas, o saldo da
temporada se revela positivo ao encerrar com Jessica finalmente deixando parte
de suas inseguranças de lado e se abrindo a uma conexão com outras pessoas.
Essa evolução da personagem me deixa curioso pelo que virá a seguir, da mesma
forma que também fico intrigado sobre como Trish lidará com as consequências de
suas ações ao fim da temporada e suas recém-descobertas habilidades.
A segunda temporada de Jessica Jones vale pela complexa jornada
emocional de sua protagonista, ainda que não seja tão concisa quanto seu ano de
estreia, tenha problemas de ritmo e apresente muitos personagens secundários
desinteressantes.
Nota: 6/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário