Alguns filmes valem a experiência
pela importância da mensagem que passam. Às vezes uma obra tem algo tão
importante a dizer que relevamos as falhas estruturais da trama, as
incoerências do roteiro ou qualquer outro problema que o produto apresente.
Este Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos
não é um desses casos. Apesar do filme trazer uma importante mensagem sobre a
inclusão das pessoas com deficiência visual, é difícil ignorar os muitos
problemas de estrutura narrativa, desenvolvimento de personagens e construção
de diálogos.
Vitório (Edson Celulari) é um chef cego e dono de uma pizzaria no
bairro do Bixiga em São Paulo. Ele desempenha sozinho a função de pizzaiolo em
seu restaurante e tem no garçom Cleomar (Leonardo Machado) seu principal
confidente. O cotidiano de Vitório fica prestes a mudar quando a esposa dele,
Clarice (Soledad Villamil), apresenta a ele um procedimento experimental que
pode devolver a sua visão. Cego desde a infância, Vitório reluta em aceitar a
sugestão da esposa e isso cria um conflito em sua família.
Os problemas surgem desde a
construção inicial do conflito entre Clarice e Vitório, já que os personagens
só irão se encontrar em cena quando o filme está perto da marca de meia hora.
Como até então sequer sabíamos direito a natureza da relação dos dois ou da
dinâmica entre eles, fica difícil embarcar ou se importar com o conflito que a
trama cria ao redor dele. Isso piora quando percebemos que mesmo depois da
apresentação desse conflito Clarice continua a aparecer pouco e ao longo do
filme inteiro Vitório tem mais cenas com Cleomar do que com a esposa. Assim, a
tensão entre os dois personagens nunca é desenvolvida de maneira satisfatória e
fica mais rasa do que deveria.
Edson Celulari e Leonardo Machado
desenvolvem uma química bem sincera entre Vitório e Cleomar, convencendo da
amizade entre os dois personagens, mas o trabalho dos dois atores é prejudicado
pelos diálogos ruins que pontuam as cenas entre eles e boa parte da projeção.
Em muitos momentos, as conversas dos dois são usadas como meio da narrativa
expor informações sobre o passado dos personagens, mas os diálogos são
estruturados de maneira pouco coerente com o que o filme estabeleceu sobre a
longeva relação entre aqueles dois.
Em dado momento é dito que
Cleomar trabalha na pizzaria há mais de vinte anos, quando o pai de Vitório
estava à frente do negócio, e assim soa estranho que durante uma conversa com
Cleomar Vitório resolva dar uma longa explicação sobre como ele conheceu Clarice.
Se os dois personagens se conhecem há décadas, então é impossível que Cleomar
não tenha acompanhado o desenvolvimento da relação de Vitório com a esposa e
não há motivo, exceto transmitir essas informações ao público, para que Vitório
faça todo esse relato para o garçom. Aliás, Vitório praticamente não conversa
com outras pessoas, suas falas são sempre solilóquios carregados de lições de
moral e frases de efeito sobre ser capaz de enxergar o que está dentro das
pessoas apesar de ser cego que martelam insistente e inorganicamente as
mensagens da narrativa.
Inorgânicas também as situações
que a trama cria para justificar algumas das motivações dos personagens. O
assalto que motiva a decisão de Vitório em aceitar o procedimento soa mal
concebido e forçado. Os assaltantes entram na pizzaria, que não está
funcionando, sem saber se o local está cheio ou mesmo que Vitório é cego (faria
mais sentido se eles já soubessem isso e entrassem ali de modo premeditado) e
começam a retirar dinheiro da caixa-registradora do restaurante. Se a pizzaria
não estava aberta ainda e não haviam clientes, como poderia haver dinheiro na
caixa-registradora? Inclusive porque uma cena anterior mostra Clarice retirando
todo o dinheiro do caixa e colocando em um envelope que leva consigo ao fechar
o restaurante. A situação piora quando Vitório tenta resistir e é atacado por
um dos assaltantes enquanto o outro argumenta que é melhor irem embora porque o
estabelecimento deve ter câmeras. Ora, se o sujeito desconfiava que o lugar
tinha câmeras, porque eles entraram para roubar sem sequer usar máscara? Que
diferença fazia bater em um cego se as supostas câmeras (a pizzaria não tinha)
já os tinham flagrado roubando o dinheiro e seus rostos estavam visíveis? Como
toda a situação é artificial, a motivação de Vitório acaba também não
convencendo.
A narrativa também tenta algumas
subtramas, mas estas acrescentam pouco e acabam não indo a lugar algum. A ideia
de que o médico responsável pelo procedimento de Vitório é um antigo namorado
de Clarice nunca realmente se desenvolve à medida de ser um grande ponto de
conflito. O mesmo pode ser dito sobre o esforço de Alicia (Giovana Echeverria)
em conseguir uma bolsa para estudar no exterior. Aliás, o que a personagem vai
estudar exatamente? O roteiro não diz, deixando tudo vago e genérico,
evidenciando que se trata de um dispositivo arbitrário do roteiro e não uma
decisão tomada por uma personagem plenamente realizada que existe um mundo
crível.
O principal problema, no entanto,
reside na maneira como a trama constrói sua mensagem final e a decisão de
Vitório em reverter o processo e voltar a ser cego. Eu entendo que o filme
queria nos dizer que os cegos não devem ser tratados como pessoas incompletas e
inferiores, que devemos tratá-los como iguais e de maneira inclusiva. Porém, ao
situar esse discurso ao redor de um tratamento médico que oferece uma
"cura", a mensagem pode ser entendida como uma noção de conformismo,
pedindo ao espectador que deixe de confiar na medicina e abra mão da esperança
de uma possibilidade de restaurar sua visão ou de qualquer mudança em sua vida,
apresentando a aceitação da cegueira como a única alternativa aceitável para
lidar com essa situação. Eu sei que não é essa a mensagem que o filme quer
passar, mas a maneira como o discurso é construído de fato se abre para essa
possibilidade interpretativa e haviam maneiras menos dúbias do filme expressar
suas ideias.
Desta maneira, as boas intenções
de Teu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos
são lamentavelmente soterradas sob uma avalanche de problemas narrativos,
situações artificiais e diálogos mal concebidos.
Nota: 3/10
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