A primeira temporada de The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia em português) foi uma das
melhores séries do ano passado. Ambientado em um universo distópico no qual o
governo dos Estados Unidos sofreu um golpe de estado e se tornou uma teocracia,
o seriado alertava para os perigos de misturar política e religião, bem como os
riscos para direitos civis e liberdades individuais que essas forças
conservadoras representam.
Havia, no entanto, o temor que
essa segunda temporada não conseguisse ser tão boa quanto o seu ano estreia.
Primeiro porque era um patamar alto demais para conseguir ser alcançado
novamente e segundo pois essa nova temporada não tinha mais o suporte do livro
escrito por Margaret Atwood, já que o primeiro ano tinha coberto o romance
praticamente inteiro exceto por seu epílogo. A verdade é que este segundo ano é
um pouco inferior ao anterior, mas ainda assim continua sendo bastante
contundente em seu exame sobre como seria viver sob a égide de um governo
religioso e machista. Aviso que a partir desse ponto o texto pode conter
SPOILERS da temporada.
A trama começa no ponto em que a
primeira temporada parou, com June (Elizabeth Moss) grávida tentando fugir de
Gilead para o Canadá com a ajuda de Nick (Max Minghella) e a partir daí
acompanhamos os desafios dela em tentar cruzar a fronteira ao mesmo tempo em
que o coronel Waterford (Joseph Fiennes) tenta trazer June de volta para sua
casa.
A trama demora um pouco para
engrenar, com os primeiros episódios mostrando June se escondendo e esperando
uma brecha para fugir enquanto sua espera é pontuada por flashbacks relativamente redundantes, que acrescentam pouco ao que
os da temporada anterior já tinham revelado sobre a ascensão do regime de
Gilead. Na primeira temporada, através do passado de June e Moira (Samira
Wiley), o espectador já via a implementação das políticas homofóbicas do novo
governo e ver isso de novo nesse segundo ano nos flashbacks de Emily (Alexis Bledel) não teve muito o que
acrescentar.
Esses primeiros episódios parecem
mais preocupados em expandir o escopo do universo e mostrar como ele funciona,
levando June à casa de uma família comum (até então só tínhamos visto como a
elite e o alto comando vivia) para mostrar um pouco do seu cotidiano ou
acompanhando Emily em seu campo de trabalhos forçados, mostrando a dura vida
daqueles excluídos de Gilead. Nada disso é um problema por si só, mas a questão
é que o fluxo narrativo acaba sendo sacrificado pela construção de mundo (ou world building para quem curte termos em
inglês), já que esse esforço de nos mostrar esse universo nem sempre serve ao
arco dramático de suas personagens enquanto que na primeira temporada essas
duas coisas caminhavam de modo mais orgânico.
As coisas começam a engrenar a
partir do ponto em que June retorna à casa do comandante Waterford e as tensões
dentro da residência e fora dela começam a aumentar. O quinto episódio, Seeds, por sinal, acaba sendo um dos
melhores da temporada ao mostrar como June tem sua força de vontade destruída
depois de recapturada. O modo como o episódio faz isso é relativamente simples,
retirando as narrações em off de
June, mas bastante eficiente. Durante toda a série até então a conduta mansa
da personagem é contrastada com suas narrações que evidenciam a sua revolta e
rejeição dos dogmas daquele lugar, revelando que apesar de tudo June
permanece dona de si. Ao retirar essas narrações da personagem, somos deixados
apenas com as imagens de sua conduta mansa e obediente, construindo o
sentimento de que ela finalmente se tornou a escrava complacente que Tia Lydia
(Ann Dowd) queria e ver June sem voz é aterrador, pois sua voz era a fonte de
esperança que o espectador tinha.
A relação entre o desenvolvimento
da narrativa e a construção de mundo também se torna mais natural a partir do
retorno de June à residência do comandante, em especial a partir da subtrama do
casamento arranjado de Nick com a jovem Eden (Sydney Sweeney), que serve para
evidenciar como a instituição marital funciona neste universo e todos os
problemas que decorrem dela, principalmente em relação a alguém que é uma
crente verdadeira como Eden.
A ida do comandante ao Canadá serve
igualmente para expandir o universo, bem como a trama de Serena (Yvonne
Strahovski), a esposa do comandante, conforme ela se dá conta de como o mundo a
vê e de que ela está sendo usada meramente como um objeto decorativo para
angariar simpatia por um regime totalitário. Não deixa de ser curioso que o
episódio em que Waterford se desentende com diplomatas canadenses tenha sido
exibido poucos dias depois do presidente Donald Trump ter se desentendido com o
primeiro-ministro canadense Justin Trudeau. Claro, o episódio já tinha sido
escrito e filmado muito antes do imbróglio do mundo real ter acontecido, mas só
mostra como a ficção não está tão distante assim da realidade.
A trama desta temporada aprofunda
a complicada relação entre June e Serena, que flutua entre a cooperação e
hostilidade ao longo da temporada. Conforme a narrativa se desenvolve, Serena
percebe que June é uma das poucas pessoas com as quais ela pode contar naquela
sociedade completamente patriarcal, mas ainda assim a esposa do comandante
muitas vezes trata June como inferior e aos poucos vamos percebendo que isso
acontece, em parte, por June “roubar” de Serena a possibilidade de ser mãe e passar
por uma gravidez e em parte por June ser um constante lembrete a Serena de que ela é
cúmplice de um governo que sistematicamente oprime e violenta as mulheres.
Ao longo da trama, as duas vão
aos poucos tentar enfrentar esse sistema e não é a toa que no momento em que
Serena dá a June uma caneta, o plano-detalhe da personagem segurando o objeto e
apertando o botão para liberar a ponta é filmado de maneira idêntica ao
plano-detalhe de uma Aia apertando um detonador em um atentado a bomba. A
escolha coloca os dois objetos em equivalência, evidenciando que uma mulher com
uma caneta é tão ameaçadora para essa sociedade quanto uma mulher com uma
bomba. A jornada de Serena também serve para mostrar que mesmo as mulheres em
alta posição social não estão livres da violência e opressão, colocando a
personagem para sentir na pele como Gilead pode ser cruel e essa vivência
direta com a violência é o que acaba justificando sua decisão em relação a June
no episódio final. O desfecho da temporada, por sinal, ousa em alterar significativamente
o status quo de muitos personagens,
servindo como um instigante gancho para a próxima temporada, que promete um
enfrentamento mais direto do regime de Gilead.
Assim, apesar de demorar para
encontrar seu ritmo, a segunda temporada de The
Handmaid’s Tale continua um contundente exame sobre a ascensão do
conservadorismo e os perigos de um estado conservador e totalitário.
Nota: 8/10
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