William Friedkin dirigiu um dos
mais célebres filmes de terror de todos os tempos com O Exorcista (1973), sedimentando a história de possessão demoníaca
na cultura pop e no imaginário popular. Aos 82 anos, Friedkin continua um
cineasta ativo e realizando bons filmes, a exemplo do excelente Killer Joe: Matador de Aluguel (2013),
mas seu mais recente trabalho, o documentário O Diabo e o Padre Amorth, está muito aquém de seu trabalho e todo
seu legado como cineasta.
O documentário começa com
Friedkin examinando a história real que inspirou O Exorcista e o impacto que seu filme teve no imaginário pop, o que
renderia um filme interessante, mas isso acaba sendo um breve preâmbulo e a
verdadeira intenção do documentário a de mostrar o exorcismo de uma jovem
italiana (que já passou por outros oito exorcismos que supostamente não
resolveram seu problema) pelo padre Gabriele Amorth.
Em nenhum momento Friedkin
questiona a natureza daquilo que aflige a mulher italiana. Do início ao fim ele
está completamente convencido de que ela está possuída por alguma força
demoníaca e por conta dessa extrema proximidade e deslumbramento com a ideia da
possessão demoníaca o veterano diretor não percebe uma questão ética
fundamental que emerge de seu registro. Como indivíduo ou mesmo documentarista,
Friedkin é livre para pensar, crer e professar suas crenças com bem entender,
mas a partir do momento que a tentativa dele em confirmar suas crenças envolve
outras pessoas e exibe potencial para impactar suas vidas, um documentarista
precisa pensar em que tipo de impacto seu trabalho pode causar sobre o sujeito
filmado e se realmente vale a pena expor esses sujeitos sob o risco de um
impacto negativo.
Qual a razão de levantar aqui
essa questão ética? Bem, é possível que Friedkin esteja completamente certo em
suas pressuposições, e falo em pressuposição pois ele simplesmente acata sem
questionar as falas da jovem e do padre de que ela está possuída, sem fazer
qualquer esforço de verificar com os médicos que a jovem diz ter consultado se
eles chegaram a algum diagnóstico.
Diante de tantas pressuposições é
difícil não considerar também a possibilidade de que a mulher possa não estar
possuída e sim sofra de algum transtorno mental grave e considerar essa
possibilidade faz o filme desmoronar sob um ponto de vista ético. Afinal, há a
possibilidade de que Friedkin esteja expondo, explorando e alimentando o
transtorno mental de uma pessoa, contribuindo para a piora e dificultando a
cura de alguém que pode nem estar lúcida o bastante para ter noção das
implicações do seu consentimento para que o diretor a filme. Se há a
possibilidade, mesmo enquanto mera possibilidade, de ações do diretor estarem
causando um impacto negativo sobre a pessoa filmada, talvez ele não devesse
filmá-la.
Mesmo ignorando o evidente
impedimento ético que emerge do que Friedkin faz aqui e tentando apreciar o
filme enquanto uma narrativa de terror, O
Diabo e o Padre Amorth não tem muito a oferecer em termos de uma atmosfera
de temor e suspense. Quem me conhece sabe como sou fácil de assustar por
ficções de terror envolvendo possessão de espíritos e demônios (fiquei sem
dormir depois de ver Hereditário) e
imaginei que o caso mostrado aqui por Friedkin seria capaz de assombrar minha
mente, mas não foi o que encontrei.
As imagens do exorcismo em si não
tem nada de muito chocante, tenso ou dramático, se limitando a mostrar longas
tomadas com a mulher gritando em uma voz gutural e sendo segurada (sem muito
esforço) enquanto o padre recita as orações de exorcismo. Em termos de imagem,
não há nada aqui que não possamos ver em vídeos de Youtube de “sessões de
descarrego” de igrejas evangélicas com pastores expulsando demônios de pessoas.
Talvez por estar ciente de que as imagens em si não são grande coisa, o diretor
recorre a uma música grave, digna de filme de terror, e uma narração
excessivamente solene, na qual ele tenta fazer as imagens parecerem mais
severas do que de fato são, um expediente sensacionalista e apelativo que só
ressalta a natureza inane das imagens registradas.
Na prática o que Friedkin faz, em
termos de recursos ou estrutura, não difere em nada de docusséries estilo
“mistérios sobrenaturais” que pipocam por canais a cabo como Discover Channel e
similares, nunca mostrando nada de realmente impactante e sempre forçando a
barra para fazer tudo parecer mais impressionante do que realmente é. O auge do
exagero sensacionalista é a cena final na qual Friedkin narra uma nova
tentativa de exorcizar a mulher que é muito mais assustadora do a anterior, mas
que ele (conveninentemente, talvez) não registrou por não estar com sua câmera
no momento.
Sem qualquer imagem ou o uso de
testemunhos de outras pessoas que estivessem no momento, Friedkin abandona
completamente o discurso inicial de que iria demonstrar a existência do
sobrenatural e entra com os dois pés no sensacionalismo barato e apelativo,
algo indigno de um realizador tão hábil e competente. Como disse antes, não
creio que ele tenha sido ativamente desonesto, mas que estava tão próximo,
deslumbrado e apaixonado pela ideia de provar o sobrenatural que perdeu sua
perspectiva.
Tal como programas televisivos de
“investigação sobrenatural”, este documentário recorre a entrevistas com
cientistas para tentar promover um debate e reflexão dos fenômenos registrados,
mas Friedkin tem mais interesse em confirmar as certezas que construiu a priori do em colocar tudo em
perspectiva, tornando o debate raso e unilateral. O diretor assume a relutância
dos especialistas médicos em cravar um diagnóstico para a mulher como uma
admissão de que ela é vítima de um fenômeno sobrenatural, sendo que os
profissionais estão meramente obedecendo aos preceitos éticos de sua profissão
que interditam que um profissional de saúde mental dê um diagnóstico a respeito
de alguém que não examinaram diretamente. Os médicos apenas a examinam através
dos vídeos gravados por Friedkin, o que em si já é tendencioso por parte do
cineasta.
O fato da ciência atual não ser
capaz de explicar algo não implica diretamente na existência do sobrenatural,
afinal nos séculos XII ou XIV (período da Inquisição) a ciência humana nada
sabia sobre transtornos mentais como bipolaridade ou esquizofrenia e por conta
desse desconhecimento indivíduos que padeciam desses problemas eram queimados em
fogueiras considerados bruxos ou influenciados pelo diabo. Quando Friedkin
assume a ausência de um diagnóstico direto por parte dos médicos (que não
poderiam oferecer um diagnóstico por não examinarem diretamente a paciente, não
custa lembrar) como uma evidência irrefutável do sobrenatural, ele assume o
risco de estar promovendo uma postura tão obscurantista quanto as instituições
religiosas de outrora, o que é perigoso e irresponsável.
Mais de uma vez os especialistas
falam a Friedkin que a ciência compreende a conduta de “possuída” como um
fenômeno de cunho cultural ou sociológico, com a pessoa absorvendo o sistema de
crenças na qual está inserida dentro de um possível delírio ou fantasia,
ressaltando que isso não é prova da existência de demônios ou coisas assim.
Apesar do cuidado dos profissionais em ressaltar que não podem afirmar que ela
está de fato possuída por uma entidade sobrenatural, Friedkin faz uma narração
afirmando que os especialistas confirmaram que a possessão é real, o que nem de
longe corresponde aos depoimentos que estão no filme. Talvez no material bruto,
não utilizado no corte final, algum dos médicos consultados tenha afirmado
isso, mas pelo que é mostrado no filme ninguém chega perto de fazer esse tipo
de asserção, o que torna a narração de Friedkin em mais um momento de conduta
ética questionável ao colocar na boca de seus entrevistados palavras que eles
não disseram.
O Diabo e o Padre Amorth poderia render um exame interessante do
legado cultural de um dos maiores sucessos do diretor William Friedkin, mas o
resultado acaba sendo um produto indigno do legado do cineasta, mais
parecendo com inúmeras dessas séries de “investigação sobrenatural” do que com
uma investigação consistente. Um produto raso, sensacionalista,
apelativo e eticamente questionável.
Nota: 2/10
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