Em um determinado momento de Ilha, um personagem diz algo do tipo “nosso cinema é subdesenvolvido por natureza”.
A frase serve como uma chave para entender o filme e as escolhas estéticas e
temáticas feitas nele. Durante os anos 60 e 70, críticos, pesquisadores e
cineastas como Glauber Rocha, Fernando Solanas, Octavio Getino ou Júlio García
Espinosa já falavam sobre como o cinema poderia servir aos países latino-americanos
para refletir sobre seu próprio subdesenvolvimento e condição colonizada.
Termos como “estética da fome”, “cinema
impuro” ou “cinema imperfeito” eram usados por esses autores para falar de
filmes feitos com poucos recursos e que acabavam deixando de lado a preocupação
com uma perfeição da pureza ou perfeição estética em virtude da necessidade
urgente de contar histórias sobre pessoas e comunidades marginalizadas que não
tem suas vozes ouvidas. Ilha bebe
nessa fonte, adotando uma estética propositalmente “suja” para tecer uma trama
metalinguística sobre a natureza da representação cinematográfica e a vida no
extremo sul da Bahia.
A narrativa começa com o
sequestro do cineasta Henrique (Aldri Anunciação) por Emerson (Renan Motta).
Emerson avisa que sequestrou Henrique por querer a ajuda dele em fazer um filme
sobre a vida naquele lugar. A ideia de um “filme dentro do filme” feito de
improviso e em um regime literal de urgência (afinal deve ter gente procurando
por Henrique) serve para o ponto de partida para que Ilha assuma o risco de usar uma linguagem que exiba sem medo a “sujeira”
de sua feitura.
A câmera constantemente corta o
rosto dos atores de quadro, a luz oscila constantemente, pessoas que não
deveriam aparecer acabam surgindo em quadro, o desempenho dos atores do filme
dentro do filme é propositalmente tosco e exagerado, como que chamando atenção
para o próprio amadorismo das performances. Tudo isso feito para ressaltar a
urgência do filme feito por Emerson (que provavelmente é a história dele
próprio, embora isso não seja dito explicitamente), uma história sobre abuso,
exclusão, sobre viver à margem e não conseguir sair desse lugar marginalizado
por mais que se tente. Assim como aconteceu com o recente Temporada, de André Novais, o reconhecimento desse lugar à borda,
no entanto, não significa que a existência daquelas pessoas é alienada de
afeto, humor ou lirismo, como fica evidente pelas cenas de Henrique e Emerson
transitando pela cidade.
Henrique, por sua vez, é uma
metáfora sobre o cinema enquanto meio expressivo, preso em reproduzir as mesmas
convenções, trabalhando no piloto automático, sem se preocupar em criar coisas
que despertem seu interesse ou o movam afetivamente. Nesse sentido é tocante a
cena com um longo plano em close no
qual ele canta enquanto Emerson toca violão e o trabalho de Aldri Anunciação
permite que vejamos o personagem redescobrindo em si uma emoção que nem
lembrava possuir enquanto as lágrimas discretamente escorrem pelo seu rosto.
Assim como aconteceu em Café Com Canela, excelente trabalho
anterior da dupla de diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio, Ilha ocasionalmente se entrega a metáforas óbvias ou diálogos que
explicitam com pouca sutileza as intenções do filme. A mulher que fala sobre
não ser vista ou ter a voz ignorada explicita uma mensagem que o filme já dizia
sem precisar recorrer a esse excesso de didatismo e o mesmo pode ser dito de
alguns diálogos de Emerson como o momento em que ele fala sobre enfiar a
subjetividade dele goela abaixo das pessoas. A conduta de Emerson o filme
inteiro já comunicava esse desejo pungente de se fazer representar pelo cinema,
de ser visto e ouvido, sem que o personagem precisasse dizer isso de maneira
tão escancarada.
Esses pequenos problemas não
impedem Ilha de produzir uma
consistente reflexão sobre o retrato cinematográfico e a natureza do nosso
cinema enquanto um veículo de romper barreiras (estéticas ou temáticas) de modo
a dar visibilidade a aspectos ignorados da nossa realidade social.
Nota: 8/10
Esse texto faz parte de nossa
cobertura do XIV Panorama Internacional Coisa de Cinema
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