Iniciar um texto sobre Infiltrado na Klan não é fácil, ainda
mais quando eu ainda estou sentindo o impacto do filme sobre mim e talvez seja
difícil articular uma opinião sobre ele mesmo dias depois de tê-lo visto, mas tentarei
fazer o meu melhor. A verdade é que o diretor Spike Lee, em seu melhor filme
desde A Última Noite (2002), coloca o
dedo em uma ferida social que muitas vezes ignoramos ou subestimamos a
periculosidade por tempo demais, lembrando de como muitos eventos atuais
acontecem porque não prestamos atenção à nossa história de preconceito e
segregação. Digo nossa porque por mais que Lee se detenha a algo ocorrido nos
Estados Unidos, muito do que ele retrata da ascensão do preconceito e
intolerância é análogo à nossa história, em especial nossa história (muito)
recente.
A trama é baseada na história
real passada no interior dos Estados Unidos na década de 70. Ron Stallworth
(John David Washington, filho do Denzel Washington) se torna o primeiro
policial negro da cidade de Colorado Springs e decide se infiltrar na
organização racista Klu Klux Klan para aprender mais sobre eles e o que
planejam fazer na cidade. Ele consegue estabelecer contato com as lideranças da
organização por telefone, mas sendo Ron um homem negro e seus alvos
supremacistas brancos, ele não pode ir para os encontros, deixando a tarefa
para o colega Flip (Adam Driver), um policial branco e judeu que também não
apreço pela Klan.
O filme estabelece com clareza o
cotidiano de Ron na polícia e o modo como ele precisava engolir a seco dezenas
de ofensas raciais ditas diretamente para ele todos os dias. É possível ver no
rosto do personagem o esforço que ele precisa fazer para se manter impassível
diante dessas ofensas e, nesse sentido, torna-se compreensível a decisão dele em
querer investigar uma organização racista. O começo também evidencia o quanto a
polícia subestimava (e talvez subestime até hoje) as atividades da Klan,
achando que são apenas um bando de caipiras bêbados e burros incapazes de fazer
mal à comunidade apesar de vociferarem constante preconceito.
A trama, no entanto, não lida
apenas com o preconceito racial, mas aborda também questões de antissemitismo e
como grupos racistas como a Klan negam eventos históricos como o Holocausto para
justificarem seus preconceitos. As ofensas antissemitas ditas pelos membros da
Klan vão aos poucos afetando Flip e, assim como aconteceu com Ron, o trabalho
de Adam Driver nos permite ver como cada palavra fere seu personagem e a raiva
contida que ele sente.
Por mais que o filme trate de
questões sérias, o olhar de Lee não deixa de reconhecer o absurdo da situação
de ter um homem negro infiltrado em um grupo racista, rendendo muitos momentos
de humor conforme Ron conversa por telefone com David Duke (Topher Grace),
grão-mestre da Klan e que recentemente teceu elogios ao candidato que venceu a
eleição presidencial no Brasil, e Duke menciona a satisfação de estar
conversando com um puro ariano motivado a retornar os EUA à sua grandeza.
Ainda assim, mesmo nos mostrando
o quão estúpida é a conduta desses racistas, Lee não os reduz a meras
caricaturas. Felix (Jasper Paakkonen), por exemplo, tem um relacionamento
bastante normal e amoroso com a esposa, ainda que ambos compartilhem a mesma
paixão por genocídio étnico. Isso ajuda a dar complexidade e humanidade a essas
pessoas sem, no entanto, atenuar suas condutas. Pelo contrário, o fato desses
racistas serem pessoas como qualquer outra é o que os torna tão ameaçadores.
Eles podem ser aquele vizinho que sempre nos dá bom dia no hall do prédio ou que sempre segura a porta do elevador quando nos
vê, escondendo seu ódio e intolerância sob um verniz de civilidade que só nos
permite vem quem eles de fato são quando é tarde demais.
O filme ainda elimina qualquer
dúvida de que há uma simetria entre os ativistas do movimento negro (por mais
radicais que sejam) e os membros da Klan. Isso fica evidente na cena de
montagem paralela que alterna entre um encontro do movimento negro e um
encontro da Klan. Se a Klan está ali para reafirmar seu poder e privilégio
enquanto homens brancos, os negros compartilham entre si histórias de opressão
e violência sofrida a exemplo da fala do idoso interpretado pelo cantor e
ativista Harry Belafonte. Em uma cenas mais intensas do filme, o personagem de
Belafonte narra com detalhes gráficos o brutal linchamento de um jovem negro e
como a população branca ao redor transformou esse ato violência em uma
celebração de sua própria hegemonia e do quanto consideram a vida de uma pessoa
como algo sem valor.
Ao contrapor a celebração da
violência contra qualquer um que seja diferente feita pela Klan com o lamento
pelo extermínio de seus iguais feito pela militância negra, vemos que não há
como equivaler os dois lados. Um luta pelo seu direito de matar, oprimir,
menosprezar e manutenção de seus privilégios, enquanto que o outro batalha pela
própria sobrevivência e contra um sistema (político, social, cultural, etc)
feito para lhes dizer que sua vida não tem valor. Sim, um dos ativistas negros
chega a falar em uma guerra racial, mas enquanto isso é mantido apenas na
esfera do discurso pelos negros, os brancos de fato estão montando arsenais de armas,
treinando tiro e planejando ações de extermínio, mostrando mais uma vez que não
há simetria entre as duas coisas.
Já que mencionei questões
culturais, o filme mira em muitos momentos no papel da indústria do cinema na
disseminação do racismo. O caso mais citado é o de O Nascimento de Uma Nação (1915), de D.W Griffith. O filme se
passava depois do fim da Guerra Civil dos Estados Unidos e tratava os negros
recém libertos como uma ameaça em potencial para a população, retratando todos
como ladrões assassinos e estupradores.
Não bastasse o modo generalizante
e negativo com qual a obra de Griffith apresentava a conduta da população
negra, todos os personagens negros eram vividos por atores brancos pintados de
preto (a infame blackface). A ideia
de ter brancos maquiados não era apenas dar traços animalescos e grotescos aos
negros, mas também negar a eles qualquer possibilidade de ter controle sobre a
representação de si, tornando a blackface
um instrumento de exclusão étnica e controle discursivo. O Nascimento de Uma Nação de Griffith também exibia os membros da Ku Klux
Klan como heróis salvadores do país. Isso, como o próprio Infiltrado na Klan lembra, provocou um ressurgimento da Klan, que
naquele momento estava inativa no país.
A ideia de como a indústria
hollywoodiana ajuda a moldar nossa percepção de mundo é reafirmada no diálogo
do ativista Stokely “Kwame Ture” Carmichael (Corey Hawkins), no qual ele narra
como os filmes de Tarzan o faziam torcer para que o protagonista matasse a
população negra africana. O diálogo serve para nos lembrar da visão
colonizadora (o Tarzan é o arquétipo do “salvador branco”) impressa por esses
produtos e como eles fazem o colonizado torcer pelo colonizador, o oprimido
pelo opressor.
Spike Lee, no entanto, reconhece
o poder que uma representação positiva pode ter no diálogo em que Ron e Patrice
(Laura Harrier) falam sobre protagonistas de filmes blaxploitation como Shaft e Foxy Brown, lembrando o valor de se ver
representado positivamente e em um lugar de protagonismo. O sucesso recente de Pantera Negra (2018) deixa evidente a
importância e necessidade desse tipo de representação.
Falar do passado para compreender
o presente é uma das ideias centrais e o impactante desfecho revela como muito
da história de Ron reverbera nos dias atuais ao mostrar imagens reais da marcha
de supremacistas brancos em 2017 na cidade de Charlottesville e falas do
presidente nos EUA na qual ele repete a falácia de que existe uma simetria
entre os racistas e aqueles que se opõem a eles. É como se Lee reconhecesse que
toda essa ascensão recente de discursos de ódio se relaciona diretamente ao
fato de que os Estados Unidos nunca confrontou ou criminalizou esses grupos
racistas, varrendo para debaixo do tapete social a questão do racismo ao invés
de lidar com ela abertamente.
Desta maneira, Infiltrado na Klan é um consistente e
contundente estudo sobre a presença do racismo na sociedade dos Estados Unidos,
revelando as facetas mais ridículas e cruéis do preconceito.
Nota: 10/10
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