Na prática, Poderia Me
Perdoar? é algo que não deveria funcionar. Sua protagonista é uma criminosa
de personalidade desagradável, movida por razões egoístas e por dificuldades
que ela mesma criou para si. Ainda assim, o filme é um envolvente estudo de
personagem que reconhece a complexidade de sua biografada.
Baseado em uma história real, a narrativa segue a escritora
Lee Israel (Melissa McCarthy), especializada em escrever biografias, Lee chegou
a ter um livro entre os mais vendidos do ranking
do New York Times, mas agora vivia na pobreza e amargando o fracasso,
precisando trabalhar como revisora para sobreviver. Parte do seu fracasso se
devia aos seus objetos, escrevendo sobre personalidades sobre as quais ninguém
se interessa mais. Sua personalidade abrasiva e agressiva é outro problema,
tratando mal e com hostilidade praticamente todo mundo ao seu redor, Lee fechou
para si muitas portas.
Não que a protagonista sinta exatamente falta de ter pessoas
consigo. Lee é uma típica misantropa, detestando o contato com outros,
preferindo ficar sozinha em seu apartamento na companhia de seu gato, um copo
de uísque e a prosa cáustica e sagaz de autores como Noel Coward ou Dorothy
Parker. Qualquer coisa que não se encaixe nessas três categorias é tratada com
desprezo ou hostilidade por Lee, tornando-a uma pessoa difícil de conviver e de
gostar. Sem trabalho ou meios de se sustentar, ela começa a forjar documentos,
cartas ou bilhetes escritos pelos autores que admira para poder vendê-los a
colecionadores.
Seria fácil reduzi-la a uma ególatra desagradável ou a uma
coitada jogada à margem pela indústria literária, no entanto a diretora
Marielle Heller e a atuação de Melissa McCarthy impedem que a personagem caia
em extremos maniqueístas. É um erro comum de biografias que tratam de pessoas
controversas, como o recente Vice que
parece não ter nada a dizer sobre Dick Cheney além do fato dele ser um ser
humano completamente desprezível.
O filme não hesita em mostrar o quanto Lee é responsável
pela situação precária em que se encontra, sem deixar de reconhecer que há algo
de trágico em sua história já que ela realmente tem talento como escritora e
quer ser reconhecida por esse talento, algo que qualquer um pode entender. Seus
crimes não são suavizados ou pintados com tintas apologéticas na tentativa de
redimi-la, a trama reconhece a severidade de forjar documentos e como isso
prejudica a análise e preservação de registros históricos, mas não deixa de
observar a humanidade que há nessa pessoa difícil e desagradável.
Parte dessa humanidade emerge quando ela permite que algumas
pessoas entrem em sua vida, como o excêntrico Jack (Richard E. Grant), um
pequeno criminoso com quem Lee conversa e um bar iniciando uma amizade. Os
maneirismos extravagantes e relaxados de Jack oferecem um bom contraste à
seriedade e amargura de Lee, nos lembrando que ela é alguém capaz de empatia e
amizade. Do mesmo modo, o breve flerte entre Lee e uma dona de livraria mostra
que a despeito de suas falhas a protagonista também é capaz de afeto.
Por outro lado, o filme falha em dar contexto a quem são
essas pessoas admiradas por Lee cujos documentos ela forja. O espectador que
não for familiar por essas personalidades pode ficar sem entender o que essas
pessoas têm de tão especial ao ponto da protagonista sacrificar o sucesso
profissional para continuar a escrever sobre essas pessoas apesar da falta de
interesse público. A ausência desse contexto também faz parecer fácil o modo
como Lee forja os documentos.
Sim, eu sei que o filme é mais um estudo de personagem do
que uma narrativa criminal e de suspense, mas esses elementos acabam tornando
difícil que alguém pouco acostumado com o meio literário fique devidamente
imerso no universo construído pela trama. O mesmo pode ser dito sobre o
funcionamento dessa subcultura de colecionadores de artefatos históricos cujas
regras não são expostas ao público fazendo a fácil aceitação e eventual
rejeição soarem como meras necessidades de roteiro (quando, na verdade, não
são).
Ainda assim, Poderia
Me Perdoar? é um cuidadoso estudo de personagem elevado pelo trabalho de
Melissa McCarthy. Um retrato complexo de uma pessoa de conduta questionável que
evita maniqueísmos simplórios.
Nota: 7/10
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