A primeira vez que assisti ao documentário Mamãe Morta e Querida (2017) que contava
a história do chocante assassinato de Dee Dee Blanchard pela filha Gypsy Rose,
que todos achavam ser uma deficiente física e mental, tive certeza que
eventualmente seria adaptada para a ficção, seja como filme ou série. Assim,
foi com pouca surpresa que descobri que The
Act, série de antologia baseada em histórias de crimes reais produzida pelo
serviço de streaming Hulu, tinha
eleito a história de Gypsy para sua primeira temporada.
A trama conta a complicada relação de Dee Dee Blanchard
(Patricia Arquette) e da filha Gypsy Rose (Joey King, de Barraca do Beijo). Aparentemente com muitos
problemas de saúde desde o nascimento, Gypsy vive em uma cadeira de rodas, é
alimentada via sonda e toma uma quantidade enorme de medicamentos por dia. Aos
poucos, no entanto, a garota vai descobrindo que a mãe inventou praticamente
todos esses problemas de saúde para mantê-la sob controle e ganhar atenção e
caridade de estranhos. A temporada vai acompanhando as tensões entre mãe e
filha até o assassinato de Dee Dee.
Uma personagem como Dee Dee poderia se tornar uma caricatura
unidimensional por conta de sua personalidade controladora e conduta abusiva,
mas Patricia Arquette dá a personagem um módico de humanidade para que
percebamos que, de alguma maneira, ela realmente acredita estar fazendo o
melhor pela filha. Claro, ela é claramente egocêntrica ao ponto de apreciar
toda a atenção que recebe, sendo tratada como “supermãe” e também é ciente das
próprias mentiras, sempre tergiversando ou inventando alguma situação de crise
de saúde de Gypsy para fugir de questionamentos toda vez alguém aponta furos em
sua história. Ela também demonstra uma conduta volátil com Gypsy, agindo com
agressividade toda vez que a filha faz algo que ela não quer.
Gypsy, por sua vez, é simultaneamente uma vítima e uma
algoz. Vítima porque ela claramente teve sua infância e juventude, bem como a
convivência com o pai, negadas pelas invenções da mãe quanto à sua saúde. Joey
King, no que deve ser o melhor papel de sua carreira, evoca muito bem a maneira
como a ingenuidade e confiança de Gypsy em relação à mãe vão se transformando
em frustração e raiva conforme ela percebe que viveu uma mentira. Ao mesmo
tempo, Gypsy demonstra que pode ser tão manipuladora quanto a própria mãe, como
fica evidente na cena em que ela compra a faca que eventualmente usará para
assassinar Dee Dee.
Ao mesmo tempo, é possível perceber que o tempo confinada
com a mãe fez de Gypsy alguém extremamente ingênua, que não entende como o
mundo funciona, pautando sua visão nos contos de fada e comédias românticas que
assiste. É possível perceber isso no modo como ela acha que terá uma vida “de
cinema” ao lado do namorado, Nick (Calum Worthy), sem atentar que ele tem um
subemprego e ela não tem qualquer habilidade para se sustentar.
Calum Worhty, por sinal, faz de Nick alguém com claros
problemas de socialização, um sujeito que só uma pessoa igualmente isolada do
convívio social como Gypsy seria capaz de ver como um “príncipe encantado”. Assim
como Gypsy, Nick é também uma “vítima-algoz”, alguém que claramente não teve
nenhum problema em esfaquear uma pessoa até a morte, mas que provavelmente não
teria feito nada se não fosse convencido por Gypsy, tendo acreditado nela de
que teriam uma vida de “conto de fada” depois de matar Dee Dee.
Essa trinca de personagens ainda é complementada pelo ótimo
elenco de apoio que tem Chloe Sevigny como Mel, uma das vizinhas de Dee Dee e
Gypsy, uma mãe relapsa que inicialmente se sente incomodada pela postura de
“mãe perfeita” de Dee Dee, mas aos poucos se compadece dos problemas de Gypsy.
Juliette Lewis interpreta a ausente e desdenhosa mãe de Nick, cujo desinteresse
no filho acaba servido de oposição ao controle e superproteção de Dee Dee,
mostrando como os excessos nos dois extremos criam pessoas problemáticas. A
filha de Mel, Lacey (AnnaSophia Robb), serve como a principal ponte de Gypsy
para o mundo, sendo através de Lacey que Gypsy começa a se interessar a ter uma
vida própria, namorado e uma existência sem o extremo controle de mãe.
Já Margo Martindale vive a mãe de Dee Dee, que sempre
subestimava e julgava a filha incapaz de cuidar da própria vida. A relação de
Dee Dee com a mãe acaba servindo como um trágico espelho do que acontecerá
entre Dee Dee e Gypsy, como se a narrativa reconhecesse que abuso só pode gerar
mais abuso. Por outro lado, esses flashbacks
parecem suavizar um pouco o fato de que Dee Dee provavelmente sofria de algum
transtorno mental (no documentário especialistas chegam a dizer que ela sofria
de Munchausen por Procuração), fazendo a conduta dela parecer uma mera
consequência da complicada relação com a mãe.
De todo modo, a primeira temporada de The Act entrega um complexo estudo sobre abuso, violência e
moralidade, carregado pelas performances excelentes de Patricia Arquette e Joey
King.
Nota: 9/10
Trailer
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