Brasil, 2027, apesar de ainda se declarar um estado laico, o
país se tornou um lugar teocrático, no qual todos precisam frequentar igrejas,
casar e ter filhos. Scanners na
entrada de qualquer revelam o estado civil de cada um que entra, bem como se
uma mulher está grávida e quem é o pai. Drive
thrus de oração garantem que as pessoas ainda possam ouvir a palavra divina
mesmo no caminho para casa ou para o trabalho. Esse é o prognóstico de futuro
feito pelo diretor Gabriel Mascaro em Divino
Amor, filme feito lá em 2017, antes do último período eleitoral e do que
está acontecendo hoje no país, mas que não soa muito distante da realidade
frente a tudo que está acontecendo.
A trama é centrada em Joana (Dira Paes), uma funcionária de
cartório que lavra divórcios. Crente verdadeira em todo o discurso religioso
que varre o país, Joana tenta convencer todos que chegam a não se divorciarem,
levando-os a participar da igreja da qual faz parte: a Divino Amor. Lá, há uma
espécie de terapia religiosa de casais que inclui até a prática de swing, com os casais trocando de
parceiro durante a transa, embora não seja permitido que nenhum homem ejacule
em uma mulher que não seja a sua esposa. Joana e o marido, Danilo (Júlio
Machado, do ótimo A Sombra do Pai)
estão desesperadamente tentando ter um filho, mas não conseguem. Quando Joana
milagrosamente fica grávida e descobre que o bebê não carrega consigo o DNA de
nenhum homem registrado, ela começa a enfrentar a desconfiança da sociedade.
O universo concebido pelo filme consegue soar
simultaneamente futurista e contemporâneo, com dispositivos tecnológicos (como
os scanners nas portas dos prédios) e
luzes neon intensas que dão a impressão de algo avançado, ao mesmo tempo que
traz elementos familiares o suficiente para parecer próximo da nossa realidade
e algo possível de acontecer.
A trama vai aos poucos exibindo para nós o funcionamento
daquela sociedade, como o fato de que as pessoas não crentes são estigmatizadas
e consideradas como “desgarrados” ou que bebês sem um pai registrado são
abandonados em orfanatos, denotando o caráter patriarcal do lugar. Do mesmo
modo, aos poucos também vamos percebendo como as igrejas evangélicas, em
especial as que tratam a fé como um produto a ser comprado e vendido, dominam
aquela sociedade. O carnaval foi substituído por uma espécie de rave gospel e carros passam em um drive thru de pregação para se
aconselharem com um pastor.
Fica evidente que este é um universo no qual a fé não é um
instrumento de edificação dos indivíduos, feito para estimular o cuidado com o
outro, o amor ao próximo, a aceitação ou a tolerância. Neste Brasil do futuro
(e talvez no do presente) a fé é um produto, um instrumento de poder, de
controle social, uma maneira de colocar as pessoas em caixinhas e jogar fora
aqueles que não querem ou não podem se encaixar. Qualquer um que não siga os
preceitos religiosos ou diga algo que vá contra eles é imediatamente excluído e
desacreditado, como mostra a jornada de Joana.
Dira Paes faz de sua personagem alguém que verdadeiramente
acredita em todo o discurso religioso ao seu redor ao ponto de não ver problema
em interferir nos processos de divórcio que chegam na mesa dela. Afinal, na
cabeça da personagem o ser humano existe para casar e ter filhos, então
preservar o casamento e a família seria algo natural. A fé de Joana é colocada
em questão quando ela descobre que o filho que carrega no ventre não tem DNA de
homem algum. Enquanto a protagonista conclui estar diante de um milagre, todos
ao seu redor desconfiam dela e a tratam como uma mentirosa ou adúltera.
A situação de Joana serve para desvelar como a superfície
amorosa desses religiosos esconde pessoas intolerantes e hipócritas, que estão
preocupadas demais com seu status
social e seguir normas arbitrárias do que estarem abertas ao diálogo com o
divino ou à percepção de possíveis milagres. Em essência Mascaro constrói aqui
um Brasil tomado por falsos moralismos no qual aqueles que mais exclamam estar
próximos de Deus não são capazes de reconhecer a presença Dele quando tem a
chance, uma religiosidade hipócrita que serve apenas para controlar a vida das
pessoas, os corpos das mulheres e manter a estrutura social do jeito que está
sem espaço para questionamento. Um tipo de dogmatismo religioso tão distante do
ideal cristão que excluiriam Cristo e o tratariam como herege se retornasse na
contemporaneidade. Enfim, um Brasil não muito distante do contexto atual.
Divino Amor é uma
contundente distopia sobre a religiosidade de varejo que tem avançado no Brasil
nos últimos anos e as possíveis consequências desse fenômeno.
Nota: 8/10
Trailer
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