Fiquei um tempo em silêncio sentado na poltrona do cinema
enquanto os créditos subiam ao fim de Bacurau,
novo filme de Kleber Mendonça Filho, que aqui dirige ao lado de Juliano
Dornelles. Os dois longas anteriores de Kleber, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016) tinham me causado
impacto semelhante e, em igual medida, fui deixado sem saber como organizar meu
raciocínio para falar do filme ou o que dizer exatamente sobre ele, já que
parecia ter coisa demais para eu dar conta em um texto. Ainda assim, tentarei.
A narrativa se passa em um futuro não especificado no qual
as coisas pioraram bastante no Brasil. O ponto central da trama é a pequena
cidade de Bacurau, que sofre com falta de água depois que o governo represou um
rio próximo. Teresa (Barbara Colen) retorna à cidade para o funeral da mãe,
dona Carmelita, mas em seu tempo lá coisas estranhas começam a acontecer:
drones passeiam pelos céus, carros são baleados e pessoas são mortas sem
explicação. Assim, Teresa e outras figuras proeminentes na cidade como Acácio
(Thomas Aquino) e a médica Domingas (Sônia Braga) tentam entender o que está
acontecendo.
A trama aos poucos dá algumas pistas da situação através de
cartazes, imagens de televisão e comentários breves dos personagens, o bastante
para pintar a imagem de um Brasil profundamente dividido, desigual e violento
sem, no entanto, referenciar um regime de governo específico. Isso ajuda o
material a ter uma qualidade atemporal ao invés de algo preso a tópicos
políticos muito específicos e que perderia daqui a dez anos ou algo assim
quando tivéssemos mudanças significativas (ou não) no campo político.
Menções a um “Brasil do sul” parecem indicar que houve algum
tipo de conflito de secessão no país, imagens de execuções públicas na televisão
remetem a um Estado autoritário e truculento e o fato de Bacurau não constar no
mapa, não receber água ou Teresa ter que levar remédios até lá indica um lugar
esquecido ou ignorado pelas autoridades. Todos esses elementos remetem a coisas
que já vimos serem cogitadas no Brasil, movimentos de secessão tem aparecido
nos últimos anos, o abandono de regiões carentes no nordeste é uma constante e
já tivemos nosso período de ditadura brutal.
Essa noção de que os habitantes de regiões sul do Brasil se
veem como um povo separado fica evidente na cena em que os dois motociclistas
brasileiros conversa com os estrangeiros que estão matando os habitantes de
Bacurau. Os estrangeiros se referem aos habitantes da pequena cidade como “o
povo” dos motoqueiros, mas a personagem vivida por Karine Teles essa noção
dizendo que não são da área e sim do sul do Brasil, uma região com colônias de
italianos, alemães e outros povos europeus brancos, estando assim mais próximos
dos estadunidenses do que da população negra e mestiça de Bacurau. A fala é
recebida com risos pelos estrangeiros, que dizem que os dois brasileiros não
são brancos, apontando seus narizes e lábios como evidência, que no máximo
seriam latinos.
Todo o diálogo é revelador do viralatismo brasileiro, que
sempre tenta achar desculpas para se ver como estrangeiro, reiterando noções
anacrônicas e racistas de que há algo de “melhor” ou “superior” em ser branco.
Ao mesmo tempo a cena mostra o quanto essa atitude vira-latas é patética, já que europeus e estadunidenses jamais verão brasileiros como iguais, independente de
quão clara seja a cor da pele, mostrando como essas populações sempre se veem
como dominadores. Nesse sentido, não é por acaso que a casa na qual os
estrangeiros se refugiem pareça ser um antigo engenho, mostrando como as
populações estrangeiras continuam ocupando (literal e metaforicamente) espaços
de poder e dominação.
A trama nunca explica de modo explícito o que os gringos
estão fazendo no país, deixando pistas de que eles estão em uma espécie de safari
de caça humano, revelando a subserviência do governo aos países estrangeiros e
como o Brasil retratado no filme permite que potências internacionais tratem o
país como um playground no qual eles
podem brincar com as vidas dos brasileiros como bem entenderem. Tudo isso
funciona como uma metáfora para o processo histórico de dominação estrangeira e
extermínio da população que acontece praticamente desde que os portugueses
aportaram em nossas terras.
Essa metáfora ao colonialismo é também trabalhada na cena em
que um dos caçadores entra no museu municipal de Bacurau e sem qualquer
cerimônia começa a pegar o patrimônio do local e guardar na mochila, como se os
itens não pertencessem a ninguém e ele pudesse se apropriar deles como bem
entendesse. Nada muito diferente do que colonizadores fizeram na América do Sul
ou na África nos últimos séculos, roubando e se apropriando de arte e objetos
de valor que não lhes pertencem.
Para além do modo constrói toda a sua trama como uma
metáfora dos processos históricos e sociais do Brasil, há uma competente
construção da tensão conforme coisas estranhas começam a acontecer na pequena
cidade e a ameaça dos estrangeiros se torna mais próxima. Kleber e Dornelles
constroem uma tensão similar à dos faroestes dirigidos por Sérgio Leone, com
longos diálogos carregados de ameaças veladas e tensão subjacente que pode
explodir em violência a qualquer momento.
Quando a violência de fato irrompe, o filme não economiza na
crueza com que tudo é mostrado, com direito à imagem de uma cabeça explodindo
em pedaços com um tiro à queima-roupa de um bacamarte. Bacurau não é, no entanto, um filme fácil de situar em termos de
gêneros narrativos. O filme dialoga não só com o western, mas com o suspense, a ficção científica e até com as
histórias do Asterix. Sim, Asterix, já que a trama se passa em uma pequena cidade,
cercada de inimigos que resiste bravamente à ocupação recorrendo a uma
substância aparentemente mística, tal qual nas histórias do gaulês criado por
René Goscinny.
O clímax do filme oferece uma poderosa e brutal catarse ao
ressaltar a resistência da população nativa de Bacurau, uma população
nordestina, não-branca e que não se adequa necessariamente a modelos
heteronormativos de sexualidade, evidenciado pela natureza andrógina de Lunga,
o líder da resistência interpretado por Silvero Pereira. Essa escolha denota
como a resistência à dominação e interferência estrangeiras não pode se dar
pelo conformismo aos padrões ou norma estabelecidos por esses forasteiros com
intento colonizador, mas através da rejeição desses padrões eurocêntricos.
A trama faz um claro paralelo entre a resistência dos
personagens e o passado nordestino de resistência ao mostrar as fotos do
cangaço no museu da cidade. Aliás, esse expediente de juntar passado, presente
e futuro da história brasileira através de fotografias é algo que Kleber
Mendonça já tinha feito tanto em O Som ao
Redor quanto em Aquarius. Apesar
de ser um filme mais focado no conjunto do elenco do que em intérpretes
individuais, é difícil não destacar o trabalho de Sônia Braga nos poucos
minutos que ela tem em cena, fazendo de Domingas uma mulher que apesar da
aparente fragilidade exala autoridade e confiança, inclusive enfrentando
desarmada e sem mostrar qualquer hesitação o líder dos forasteiros
(interpretado por Udo Kier).
Sendo uma espécie de western
futurista distópico, Bacurau é uma
excelente reflexão sobre as estruturas de poder no Brasil e como os reflexos da
dominação colonial permanecem até hoje.
Nota: 10/10
Trailer
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