Desde Bastardos
Inglórios (2009) que o diretor Quentin Tarantino se dedica a olhar a
história através da arte. Ele já foi desde a Segunda Guerra Mundial, passando
pelo período da escravidão em Django Livre (2012) e pela Guerra Civil dos EUA em Os Oito Odiados (2015) e agora, neste Era Uma Vez em...Hollywood, se volta aos Estados Unidos da década
de 60, a ascensão dos serial killers e
o fim do “sonho americano” consolidado no pós-guerra. Ao final da Segunda Guerra
Mundial, os Estados Unidos foram a única grande potência razoavelmente intacta
enquanto que boa parte dos países europeus estava em ruína. Isso permitiu que o
país crescesse e expandisse sua influência mundial ainda mais, tanto termos
econômicos quanto políticos, sociais e culturais.
Foi um período de bonança e prosperidade para o país, que
parecia inatingível e projetava um ideal idílico de perfeição. Movimentos de
contracultura apontavam para possíveis avanços sociais e uma melhora de vida em
geral. Ao final dos anos 60, no entanto, as rachaduras nessa fachada perfeita
começaram a aparecer e os assassinatos cometidos pelo “culto” liderado por
Charles Manson quebraram a impressão de invulnerabilidade que o país construíra
para si nas últimas décadas. Serial
killers começavam a pipocar em diferentes cidades e a sensação era que os EUA não
só deixara de ser seguro, como era tomado por uma violência que as pessoas não
conseguiam compreender muito bem, algo mostrado na série Mindhunter.
A isso, soma-se o fracasso da guerra no Vietnã, na qual
milhares de vidas se perderam a troco de nada, e o escândalo Watergate que
derrubou o presidente Richard Nixon. Assim, a década 70 foi marcada por uma ressaca
moral na sociedade estadunidense e a sensação de que a “era de ouro” iniciada
no pós-guerra chegava ao fim conforme o país era tomado por incertezas, um
período muito bem ilustrado pelo diretor Paul Thomas Anderson em Vício Inerente (2014), com o qual Era Uma Vez em...Hollywood faria uma ótima sessão dupla.
Tarantino parece entender o papel que a “família” Manson tem
como estopim do fim dessa era de prosperidade e inocência do país e é
exatamente por isso que se volta a história de Manson (Damon Harriman) e do
assassinato de Sharon Tate (Margot Robbie). A trama é protagonizada por Rick
Dalton (Leonardo DiCaprio), um ator em fim de carreira que agora se limita a
participações especiais na televisão. O melhor amigo de Dalton é seu dublê,
Cliff Booth (Brad Pitt), que também trabalha como motorista e faz-tudo de
Dalton.
A carreira decadente de Dalton funciona como uma metáfora
para o próprio país e o cinema feito lá, preso a modelos antiquados, lutando
para manter a relevância sem perceber que tudo estava para mudar. Nesse
sentido, é bastante simbólico que o culto de Manson more justamente na fazenda
em que Dalton e Booth filmavam seus antigos faroestes, como um símbolo de que a
era de mocinhos e bandidos na qual o herói sempre vencia estava sendo
substituída por uma profunda e incompreensível força de instabilidade. Dalton é
decadente não por incompetência como ator, já que seu talento é evidenciado
quando o vemos gravar um piloto de televisão, mas pela figura que ele
representa estar a caminho da irrelevância conforme cultos como o de Manson
ganhavam força.
Nesse sentido, o filme estabelece uma clara oposição entre
Dalton e Tate. Se Dalton representa o melancólico fim de uma era, a Tate de
Margot Robbie funciona como uma enérgica promessa do que está por vir (ou
estaria, já que, no mundo real, Sharon Tate foi assassinada). Não é a toa que
Tate assista a si mesma em uma sala de cinema cercada de pessoas aplaudindo seu
trabalho enquanto Dalton se assiste na televisão (que na época era considerada
como inferior ao cinema) na sala escura de sua casa apenas na companhia de
Booth. Ela está em ascensão, em um amplo espaço, enquanto ele vê seu espaço de
tela literal e metaforicamente diminuir.
DiCaprio, por sinal, é ótimo em construir a insegurança e
vulnerabilidade de Dalton, que nos soa simultaneamente trágica e patética. Nos
compadecemos de seus ataques de pânico, de suas incertezas quanto ao seu
futuro, mas também rimos de seus chiliques quando trata qualquer deslize no set
de filmagem como algo com potencial de acabar para sempre com sua carreira.
A trama progride sem pressa, alternando entre o cotidiano de
Dalton e o cotidiano de Tate, criando a oposição entre as dificuldades de
Dalton e o glamour de Tate. O ritmo
mais lento, mais slow-burn, pode
afastar alguns em busca de algo mais ágil, mas é importante para mostrar o
cuidado de Tarantino em conseguir capturar o espírito da época e o olhar do
diretor traz um afeto e uma reverência tão grande por tudo aquilo que é difícil
não se deixar encantar.
Como todos os filmes que Tarantino fez depois da morte de
sua montadora habitual, Sally Menke, fica a impressão de que o diretor não tem
mais quem contenha seus excessos. Muitos momentos (como o segmento de Dalton
gravando um piloto para televisão) podiam ter sido reduzidos e alguns
segmentos, como o que envolve Bruce Lee (Mike Moh), parecem existir apenas para
o diretor desfiar sua cinefilia para o público. Por outro lado, este parece ter
menos excessos do que Django Livre (2012)
ou Os Oito Odiados (2015).
É inevitável falar do final para analisar este filme, então
não recomendo que quem não assistiu e quer preservar a experiência que leia os
próximos parágrafos. O clímax oferece o mesmo tipo de revisionismo histórico
através de catarse violenta que Tarantino vem trabalhando em suas obras desde Bastardos Inglórios. Se em produtos
anteriores ele tratou nazistas e racistas como pessoas deploráveis, dignos de
nossa repulsa e escárnio, aqui ele faz o mesmo com os assassinos do culto de
Manson, tratados como idiotas ignorantes e preguiçosos. Ao ridicularizar Manson
e seus asseclas, tratando-os com um exagero paródico, Tarantino quer vencer
brutalidade e fanatismo do culto através da chacota, mostrando que eles não são
dignos do nosso medo, mas do nosso riso, que devemos expô-los ao ridículo que
são.
A ideia de evitar o crime e reescrever a história funciona
como uma tentativa de expurgar através da arte os males que a trupe de Manson
causou à nação. Nesse sentido, a escolha de Dalton e Booth para serem os
salvadores tem a ver justamente com a ideia de um retorno à “época de ouro” na
qual esses personagens prosperaram, um período no qual o mocinho sempre
derrotava o bandido e tudo acabava bem no final. É como se, ao expurgar o mal
de Manson, pudéssemos voltar a vestir um véu de inocência e crer que tudo
ficará bem. Ao evitar que tudo tivesse ocorrido, essa “época de ouro” nunca
teria chegado ao fim e a história da “família Manson” seria só mais conto em
que heróis triunfariam sobre a maldade. Uma história ideal para se começar com
“era uma vez” ao invés de uma grande tragédia que produziria uma ferida social
por vários anos futuros.
Em Era Uma Vez
em...Hollywood o diretor Quentin Tarantino exibe seu afeto ao período
clássico hollywoodiano ao mesmo tempo em que reflete com certa melancolia sobre
os eventos que levaram ao fim dessa belle
époque.
Nota: 9/10
Trailer
Um comentário:
muito bom texto. Realmente Sally Menke faz muita falta nos filmes "Tarantinianos".
Postar um comentário