O diretor Martin Scorsese levou mais de uma década para
finalmente conseguir filmar a biografia do mafioso Frank “O Irlandês” Sheeran
e, de certa forma, é bom que ele tenha demorado tanto. Em geral, filmes que
passam muito tempo no “limbo do desenvolvimento” tendem a passar por múltiplos
tratamentos de roteiro, roteiristas e diretores ao ponto em que quando
finalmente são lançados, o resultado é uma colcha de retalhos sem
personalidade, vide o recente Projeto Gemini, mas não é o caso neste O Irlandês.
Aqui Scorsese demonstra um olhar bem maduro, talvez fruto do
tempo trabalhando no filme, talvez pelo seu próprio momento como cineasta, agora
já veterano e no pleno domínio de seu ofício. Se em Os Bons Companheiros (1990) Scorsese falava sobre a glamourização
da vida de mafioso, aqui seu olhar é plenamente desglamourizado. Tal qual o
protagonista, o olhar de Scorsese tem uma certa melancolia e distanciamento
analítico. É o olhar de alguém com muita experiência de vida e que consegue
olhar para o passado pelo que ele é e não pelas lentes da nostalgia.
A trama conta a história real de Frank “O Irlandês” Sheeran
(Robert De Niro) e sua trajetória na máfia ao lado do chefe criminal Russ
Bufalino (Joe Pesci) e sua relação com o líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino)
e todo o processo de corrupção de sindicatos trabalhistas pelo crime
organizado.
Com três horas e meia, o filme é um grande épico sobre
amizade, lealdade e violência. Graças a competentes efeitos digitais o já
septuagenário Robert De Niro é capaz de interpretar Sheeran desde seus trinta
anos até sua velhice. Tudo que é típico do cinema de Scorsese está presente
aqui: os diferentes personagens falando diretamente para trama, os travellings de câmera que seguem o
caminhar dos personagens, uma certa ironia no uso da música. Apesar dos
recursos conhecidos e da longa duração, a narrativa nunca soa cansativa e isso
se deve ao senso de ritmo que Scorsese consegue dar ao filme que vai numa
crescente de tensão conforme a relação de Sheeran e Russ com Hoffa vai se
desgastando.
O Sheeran de De Niro é alguém que entra para o crime
inicialmente para ganhar um dinheiro fácil e aos poucos vai sendo recompensado
pela sua lealdade e deferência com os chefões. Com o passar dos anos, no
entanto, ele vai sentindo o peso dos anos de violência e isso vai impactando a
relação dele com a família até o eventual desajuste com Jimmy Hoffa.
Apesar de ser um homem que não tem qualquer problema em
lidar com a violência, a narrativa encontra espaço para humanizar o personagem,
algo visto já nos primeiros minutos quando vemos um Frank sexagenário em uma
viagem de carro com Russ e suas respectivas esposas. A banal viagem do quarteto
de idosos Ao final, a trajetória da Sheeran é menos um típico conto de
“ascensão e queda” e mais uma reflexão sobre a futilidade da violência e do
poder, já que apesar de tudo isso o personagem termina isolado e solitário.
Pacino, por sua vez, traz uma energia intensa a Hoffa, que de fato era um
orador exasperado e dado a exageros. Uma conduta irascível que acabou sendo a
condenação do personagem.
Além de um estudo de personagem, o filme é também um estudo
sobre a onipresença do crime nas estruturas sociais dos Estados Unidos. Pelo
modo como é narrado pelo filme nada acontece no país, seja uma negociação
sindical ou uma eleição para presidente, sem que os grandes nomes do crime
permitam. Como o texto é baseado em um livro autobiográfico de Sheeran é
perfeitamente possível questionar alguns detalhes históricos contados, afinal o
protagonista se posiciona como figura central nos principais eventos históricos
e criminosos do país, do incidente na Baía dos Porcos ao sumiço de Jimmy Hoffa,
quase como um Forrest Gump mafioso.
Independente do relato de Frank ser verdadeiro ou não, ao
menos serve para amarrar dramaturgicamente todos esses eventos e criar esse
senso dos Estados Unidos como um país que deve sua prosperidade ao crime, Como
lembra um dos personagens, mesmo famílias da alta sociedade como os Kennedy
devem sua fortuna ao crime, tendo enriquecido com o contrabando ilegal de
bebidas durante a lei seca. O filme tece essa panorama com certa frieza
analítica, sem recorrer a julgamentos ou moralismos fáceis, apenas atestando de
maneira dura a realidade brutal que repousa no cerne da nação. É,
possivelmente, por essa frieza e esse fatalismo, que o filme tenha tanto
impacto, já que conforme Hoffa começa a desagradar os líderes mafiosos, fica
evidente que um confronto entre ele e Sheeran é inevitável.
Com uma ampla escala e uma direção segura, O Irlandês traz uma reflexão profunda
sobre os impactos do crime, tanto na sociedade quanto na vida de quem os
comete.
Nota: 10/10
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