No texto anterior mencionei como Watchmen começava já deixando claro os
temas que seriam centrais para sua narrativa e parecia usar um massacre étnico
real ocorrido nos Estados Unidos para falar do racismo institucional no país,
tentando fazer algumas relações entre isso e a iconografia dos super-heróis. Na
primeira parte analisei como, apesar das qualidades, os primeiros episódios não
deixavam muito claro exatamente até onde a série queria levar esses temas, mas,
conforme a temporada foi se desenvolvendo, se tornou possível ter um melhor
vislumbre do caminho que a narrativa queria seguir. Assim como na primeira
parte, aviso que o texto pode conter SPOILERS.
Através do espelho
É no quinto episódio que a série
começa realmente a decolar e a mostrar até onde deseja levar a complexidade de
seus temas. Até então o mistério principal de quem era Will Reeves (Louis
Gossett Jr), qual o motivo dele ter matado o chefe de polícia Judd (Don
Johnson) ou quem exatamente era a Sétima Kavalaria vinha sendo cozinhada em
banho maria enquanto a trama focava em desenvolver seus personagens e o
universo ao redor deles. As coisas começam a mudar no quinto capítulo, centrado
em Wade/ Lookin Glass (Tim Blake Nelson).
Desde os primeiros episódios
Looking Glass se mostrava consideravelmente parecido com o Walter Kovacs/
Rorschach, por conta da máscara que cobria todo o rosto, o comportamento paranoico,
o hábito de não tirar a máscara nem para comer (e a preferência por feijões
enlatados), ainda que Glass estivesse aparentemente do lado oposto do espectro
político. Ao vermos suas origens no início do capítulo cinco, vemos o quanto
ele era próximo de Kovacs.
Wade era o mesmo tipo de
conservador religioso e moralista carregando placas de fim do mundo, mas tem a
vida transformada justamente por conta do ataque encenado por Adrian Veidt. Se,
no entanto, Rorschach usava a sua máscara como uma substituição de seu “eu”
real, as razões de Wade para passar boa parte de seu tempo mascarado são bem
diferentes. Wade é motivado pelo medo, pelo trauma do que presenciou durante a
aparição da criatura.
Wade pauta toda a sua existência
em se prevenir de outra invasão alienígena e Tim Blake Nelson é ótimo em evocar
o senso de isolamento e desamparo de Wade, um homem com um constante semblante
de derrota. Na verdade todo o episódio é permeado por uma sensação de temor,
incerteza e fracasso que remete à série The
Leftovers, também produzida por Damon Lindelof e que também abordava, como
este episódio de Watchmen, um grupo
de pessoas cujas vidas foram tomadas por uma catástrofe que não entendem.
Falando em sentimento de derrota,
é bastante acertado que a série escolha usar o Requiem composto por Mozart na
cena em que Wade descobre a verdade sobre a criatura alienígena. Um réquiem é
uma música fúnebre dedicada aos mortos e oferecida como um repouso a sua alma.
Ao longo da série o Requiem de Mozart irá tocar várias vezes e sempre para
“sepultar” uma verdade que os personagens tinham como absoluta. Isso acontece
com Wade neste quinto capítulo, acontece com Angela em um capítulo anterior
quando ela descobre os robes da Klan do chefe de polícia, um homem que ela
admirava, ou no fim do julgamento de Adrian Veidt (Jeremy Irons) em Europa.
É o senso de que o mundo em que
acreditava desabou e nada mais lhe resta a não ser tentar entender o que está
acontecendo que motiva Wade a trair Angela, possivelmente sua única amiga, e
entregá-la a Laurie Blake (Jean Smart). Isso serve como pontapé inicial para o
que é um dos melhores episódios da série.
História passada e presente
O sexto episódio finalmente conta
a origem de Will Reeves, o suposto avô de Angela e aparentemente o homem responsável
pelo assassinato do chefe de polícia Judd. A história é contada depois que
Angela toma Nostalgia, uma droga que armazena as memórias das pessoas e faz
quem tomar (independente de ser o dono das memórias ou não) reviver as memórias
contidas nos comprimidos. Assim, Angela revive as memórias do avô, o que traz
algumas revisões no cânone do universo de Watchmen.
A ideia de transformar nostalgia
em uma droga perigosa é, em si, uma boa sacada, principalmente para os tempos
de saudosismo em que estamos vivendo, com as pessoas se refugiando em elementos
presentes em sua juventude como fuga dos problemas que vivenciamos hoje. A
indústria cultural teve um papel decisivo nessa onda nostálgica, explorando
esse passadismo como uma commodity e
produzindo diferentes reboots e
reinvenções, nos mantendo presos a muitas lembranças sem, no entanto, ter nada
a dizer sobre esse passado. Olhar o passado sem ter uma âncora no presente,
como aponta a série, pode ser perigoso e pode nos manter presos nesse passado.
No entanto, o texto ainda mostra o quanto entender o passado é importante para
a compreensão do presente.
A partir do momento em que
adentramos as memórias de Will, as imagens se tornam preto e brancas e em
muitos momentos Angela substitui o avô nas imagens. Essa escolha é feita tanto
para denotar que é Angela quem está vivenciando as memórias do avô em primeira
pessoa, mas também que as vivências de Will são similares às de Angela. Ambos
têm um desejo de fazer justiça, ambos são vítimas de atos racistas, ambos partilham
da frustração de não conseguirem combater o racismo por vias legais e ambos
decidem se tornar vigilantes mascarados em algum momento em suas vidas.
Sim, pois Will é revelado como a
identidade secreta do Justiça Encapuzada, um dos primeiros super-heróis a
surgirem neste universo e que no quadrinho de Alan Moore nunca tenha a
identidade revelada. O quadrinho, no entanto, deixava subentendido que ele era
um homem branco pelo que era possível enxergar de seu rosto a partir da máscara
e a ideia de que ele, na verdade, era um homem negro em “whiteface” pode parecer estranha para fãs puristas do trabalho de
Alan Moore, mas não deixa de ser uma decisão que dotada de sentido.
Se olharmos com atenção o visual
do Justiça Encapuzada funciona como uma espécie de anti Ku Klux Klan, com seu
capuz negro pontudo se opondo ao capuz branco da Klan. Além disso, o nó de forca que ele usa no pescoço é um símbolo que se relaciona com os crimes
raciais perpetrados pela Klan, que deixavam negros enforcados em árvores, algo
que acontece com o próprio Will na série. Ao usar o nó no pescoço é como se
Will tentasse usar contra seus inimigos o próprio símbolo de medo criado por
eles.
O racismo e preconceito
enfrentados por Will não vem só de pessoas propriamente racistas como membros
da Klan ou da misteriosa organização chamada Ciclope, mas também de pessoas
ditas progressistas e próximas de Will. Isso fica evidente no modo como o
Capitão Metrópolis (Jake McDorman), um super-herói amigo e amante de Will,
menospreza as denúncias sobre o Ciclope, dizendo que uma conspiração racista
era invenção da cabeça de Will e que enfrentar esse tipo de organização não
daria visibilidade a eles, como se esse fosse um assunto menor.
A negação do racismo como um
problema social a ser enfrentado é uma das razões pelas quais Angela passa
pelas mesmas experiências do avô e remete ao primeiro episódio e ao que
mencionei sobre o ensaio A Case for
Reparations, que demonstra como o racismo foi permitido a continuar nos EUA
e a necessidade de lidar com as consequências disso. O sexto episódio
demonstra, através das histórias de Will e Angela, da fusão entre passado e
presente, como o racismo perdurou no pais e as desigualdades provocadas por ele
continuaram a gerar consequências.
A ideia de que o Justiça era um
homem negro se passando por branco também dialoga com a primeira cena do
primeiro episódio, o Massacre da Wall Street Negra e o filme de Bass Reeves. O
xerife de Bass Reeves usava uma máscara em parte para esconder sua etnia, para
evitar o racismo da população branca local em ter um homem negro como um
vigilante da lei. A motivação para Will se pintar de branco é derivada justamente
de Bass, já que Will era o garoto assistindo o filme no primeiro episódio. Como
diz um personagem da série “um homem branco de capuz é um herói, um homem negro
de capuz é uma ameaça”. A fala remete a uma ideia de como a iconografia dos
super-heróis está também conectada a uma visão de mundo branca e dotada de
certos preconceitos, mas essas ideias eu explorarei na terceira e última parte.
Confiram aqui a primeira parte
Confiram aqui a segunda parte
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