Há quarenta anos Hollywood tenta
levar o musical da Broadway Cats para
os cinemas. Agora que uma adaptação finalmente chegou aos cinemas entendemos o
porque da demora. Dirigido pelo mesmo Tom Hooper que quase conseguiu estragar Os Miseráveis (2013), essa adaptação de Cats já estava sendo execrada desde
antes do lançamento por conta do visual bizarro dos gatos humanoides e é fácil
bater no filme por conta disso (eu mesmo o farei nos próximos parágrafos), mas
mesmo ignorado todo o aspecto estranho e sinistro da computação gráfica (o que
é bem difícil, por sinal) que envolve os atores, o que sobra é um musical sem
ritmo e sem impacto, que gera mais vergonha do que encantamento.
Na trama, os gatos Jellicles
fazem sua reunião anual para decidir quem será enviado para uma vida melhor. A
gata Victoria (Francesca Hayward) conhece o bando e se junta aos demais gatos.
É esse mínimo fiapo de trama que vai situar os números musicais do filme, no
qual cada número é praticamente a apresentação de um dos gatos. Essa falta de
qualquer coisa que malmente representa um arco narrativo já estava presente no
musical de teatro, é verdade, mas no teatro isso causa menos incômodo já que
essa sucessão de atrações sem muita trama já existia em antigas formas
teatrais, como o vaudeville.
Nem tudo que funciona em um meio
necessariamente irá funcionar o outro e é aí que deve residir o esforço de
adaptação, em atender as demandas de um meio diferente sem tirar a essência do
material original. Talvez uma adaptação de Cats
funcionasse em uma chave metalinguística, contando a história de uma
companhia de teatro que precisa fazer uma montagem do espetáculo ou talvez como
um projeto de vários diretores no qual cada um dirigisse o segmento de um gato, poderia também ser uma animação, como o Steven Spielberg tentou fazer na década de 90.
Do jeito que está, no entanto, soa como um produto vazio, já que não tem nada a
dizer sobre o universo ou personagens que constrói. Sim, seria possível dizer
que ele não tem interesse nenhum em contar uma história e isso é relativamente correto,
o foco é no espetáculo, no entanto como nem isso ele consegue entregar, é
inevitável não olhar para as outras variáveis.
Assim como aconteceu com Os Miseráveis, Tom Hooper filma e monta
todas as performances de maneira excessivamente estática, carecendo de energia
e dinamismo. O mesmo pode ser dito das escolhas dos arranjos das músicas, nos
quais até mesmo a clássica Memories,
aqui cantada por Jennifer Hudson soam arrastas e sem força (a versão de Hudson
para o videoclipe do filme é melhor) e você sabe que um filme tem problemas
quando não consegue acertar sua canção principal mesmo sob uma voz talentosa.
A decisão por fazer tudo em
captura de movimento, substituindo em pós-produção o corpo dos atores por
felinos antropomórficos também causa muitos problemas. O primeiro é a evidente
desconexão entre os corpos felinos digitais e os rostos humanos dos atores, que nunca
parecem ser uma coisa só. Na verdade, a impressão é que os rostos estão
flutuando nos corpos dos personagens, como se fosse algum filtro ruim de
Instagram. As proporções dos corpos felinos em relação aos cenários nunca
parecem corretas o que piora com a inserção de criaturas com escalas
diferentes, como baratas e ratos antropomórficos que são ainda mais
desproporcionais e cujo visual é tão bizarramente sinistro que parecem saídos
de um filme de terror dirigido por David Cronenberg.
Como todos esses personagens
digitais soam excessivamente artificiais, as performances de dança tem seu
impacto diluído, já que as criaturas digitais parecem estar soltas no ar,
divorciadas da realidade que estamos vendo na tela. Não há uma sensação crível
de corporalidade, de que estamos vendo o esforço e virtuosismo de dançarinos em
mexerem seus corpos e sim marionetes desprovidas de esqueletos e músculos. Isso
fica evidente no número de sapateado, no qual o felino digital nunca nos
convence de que seus pés estão tocando no chão e produzindo o som do tilintar
dos sapatos.
Algumas decisões de design dos personagens também causam
grande estranhamento, como o fato de alguns personagens vestirem o que parece
ser casacos de pele de gato. Como assim? Eles são canibais? Eles esfolam
cruelmente a pele de membros da própria espécie apenas para conforto estético?
Ninguém na equipe criativa pensou que isso era muito medonho? É o tipo de
problema que seria facilmente evitado se ao invés de animais fotorrealistas
tivéssemos apenas atores vestidos de gato com próteses e maquiagem como no
teatro.
Outra escolha estranha é colocar o
contorno de seios humanos nas gatas. Porque colocar seios humanos nas gatas? Gatas
não têm mamas como as de mulheres humanas. Fica parecendo uma tentativa de
sexualizar esses animais para o público. Leiam essa última frase em voz alta e
vocês ver como essa decisão soa terrivelmente bizarra. E sim, me parece que há
uma decisão deliberada em sexualizar os personagens, já que eles se mostram
sexualmente excitados boa parte do tempo (em especial nos números envolvendo
Taylor Swift e Jason Derulo) ao ponto em que eu pensei estar diante da paródia pornô de Cats e não do filme em si. Sério, não
lembro dos gatos do musical de teatro demonstrando estar com tesão o tempo
todo. Tudo isso levanta a pergunta: quem é o público alvo desse filme? Pessoas
com fetiches por furries que passam o
tempo na internet fazendo fanfics eróticas
do Sonic se envolvendo sexualmente com personagens de My Little Pony ou Shrek? Sério, isso existe e é uma matéria-prima de pesadelos.
Esse esforço de fazer os gatos
digitais parecerem sensuais produz mais constrangimento e risos do que
excitação (ao menos em mim, não vou por minha mão no fogo por vocês não), mas,
na verdade, tudo que os personagens fazem no filme gera mais risos e embaraço
do que qualquer outro efeito. É difícil ver alguém como Judi Dench num corpo
felino digital deitada em uma cesta com as pernas para o alto e não sentir
qualquer outra coisa além de vergonha e o mesmo pode ser dito por Rebel Wilson
lambendo a virilha ou o praticamente qualquer outra ação da maioria dos membros
do elenco. Sério, é daqueles filmes que daqui há algum tempo as pessoas irão se
reunir para assistir só para dar risada. Eu me sentiria genuinamente mal em ver
tanta gente tarimbada com Dench ou Ian McKellen se prestando a isso, porém eles
provavelmente receberam um bom dinheiro para passar por isso (e se não
receberam deveriam demitir seus respectivos agentes), então não consigo ficar
mal por eles.
É impressionante como cada
escolha artística feita em Cats soa
terrivelmente equivocada, resultando em um musical tão desastroso que chega a
ficar engraçado.
Nota: 3/10
Trailer
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