A segunda temporada de Westworld me incomodou por recorrer
demais a truques desonestos de montagem para dar a impressão de algo complicado
e impenetrável. Isso, no entanto, era artificialmente construído pelo fato da
estrutura narrativa constantemente negar informações ao público apenas para
poder revelá-las de maneira bombástica mais adiante sem dar qualquer pista do
que poderia acontecer, como foi na primeira temporada, em que espectadores
atentos conseguiram antever algumas reviravoltas.
A impressão é que o segundo ano
queria tanto preservar seus segredos que foi desonesto com o público e criou
uma estrutura hermética e complicada apenas para ser hermético e complicado ou
soar mais esperta do que realmente é, sem que essa estrutura agregasse à
jornada dos personagens como no ano de estreia da série. Felizmente essa
terceira temporada é mais direta, sem recorrer a tantos truques desonestos,
ainda que também tenha sua parcela de problemas. Aviso que o texto a seguir
contem SPOILERS da temporada.
A trama segue Dolores (Evan
Rachel Wood), agora já fora do parque e no nosso mundo. Dolores busca uma
maneira de destruir o Rehoboam, um supercomputador que controla praticamente
todas as funções da sociedade naquele momento sob a justificativa de manter a
estabilidade e a paz. A jornada dela cruza com o humano Caleb (Aaron Paul), um
ex-soldado marcado por trauma que vive solitário e trabalhando em subempregos.
Ao conhecer a realidade do mundo, Caleb acaba se juntando a revolução de
Dolores. Ao mesmo tempo, Bernard (Jeffrey Wright) tenta impedir os planos de
Dolores, enquanto Maeve (Thandie Newton) é trazida ao nosso mundo pelo
misterioso Serac (Vincent Cassell), que quer que Maeve extraia da mente de
Dolores os dados que o Westworld coletou sobre os turistas humanos.
A questão do livre arbítrio
Esse terceiro ano é muito mais
direto, sem protelar explicações ou revelações. Seria fácil, por exemplo,
desonestamente segurar até os últimos episódios a explicação de quem eram os
anfitriões contidos nas “pérolas” que Dolores levou consigo do parque, mas isso
já é explicado no terceiro episódio da temporada. Isso permite um foco maior
nos personagens e no desenvolvimento de seus conflitos.
O tema central da temporada
parece ser a questão do livre-arbítrio e até que ponto somos verdadeiramente
livres para fazer nossas escolhas. Caleb funciona quase como um espelho para a
Dolores, alguém que foi jogado para diferentes cantos do mundo, que foi
colocado em diversos papéis, mas nunca por escolha própria. Como um dos
anfitriões do parque, Caleb é um sujeito preso em um loop narrativo, nesse caso
imposto pelo Rehoboam. O futuro controlado por inteligências artificiais é
estruturado em uma espécie de severo determinismo social no qual uma vez
marcado sob algum aspecto, o sistema não permite que os sujeitos saiam da
“caixa” na qual foram colocados, limitando o potencial humano em troca de um
ideal mecânico de paz e harmonia que mantem os privilégios de poucos em
detrimento do sofrimento de muitos.
Aaron Paul é ótimo em trazer a
raiva contida, a frustração e a melancolia, um homem que parece sempre ter
vivido à deriva sem saber exatamente o motivo de sua vida ter tomados esses
rumos. O sentimento de Paul é necessário para nos convencer que Dolores decidiu
apostar nele o sucesso de sua revolução e se o ator não fosse tão convincente
em apresentar a dor e frustração de um sujeito relegado a uma vida vazia só
porque um programa de computador o considerou indigno, seria difícil embarcar
em toda a trama.
Por outro lado, os últimos
episódios, em especial o penúltimo, resolve complicar demais o passado do
personagem sem que isso altere significativamente a maneira como o enxergamos.
De início ele parece alguém prejudicado pelo determinismo social do Rehoboam e
então o penúltimo episódio recorre a muitos flashbacks
e diálogos expositivos e revisar o passado de Caleb, mostrando lavagens
cerebrais, missões secretas e ao final disso tudo percebemos que ele, na
verdade, era alguém prejudicado pelo determinismo social do Rehoboam. Ou seja,
o sétimo episódio cria toda uma trama rocambolesca sobre o passado do
personagem apenas para dizer algo que já sabíamos a respeito dele.
A ideia de livre arbítrio também
é vista no arco de Hale (Tessa Thompson). Como a verdadeira Hale morreu na
segunda temporada, sabemos que essa é um anfitrião e ao longo da temporada
descobrimos que Dolores colocou uma cópia de si mesma na réplica de Hale.
Assim, ponderamos até que ponto essa “Halores” (Hale + Dolores) se manteria
igual à original ou até ponto as experiências particulares que ela teria como
Hale, convivendo com o marido e filho da Hale original, a modificariam e a
afastariam da Dolores original, colocando as duas em conflito.
O tema é também presente no tenso
final da temporada quando Maeve finalmente entende o plano de Dolores. Todo o
plano dela não era movido por ódio ou vingança, mas por uma certa empatia com a
raça humana. Por ver que os seres humanos eram tão presos a narrativas
pré-construídas quanto os anfitriões e por enxergar nos humanos a mesma beleza
e complexidade que via na própria espécie. A intenção de Dolores não era
destruir tudo, mas criar uma situação em que pessoas como Caleb ou Maeve, que
tinham grande potencial para violência e opressão, fossem colocadas diante da
possibilidade de romper com isso, de quebrar seus próprios loops narrativos.
O uso da música
Assim como em temporadas
anteriores, a trilha musical composta por Ramin Djawadi (que já tinha
trabalhado com o showrunner Jonathan
Nolan em Person of Interest) continua
fazendo um excelente uso de músicas não originais. Um exemplo é o quinto
episódio, no qual Caleb está sob efeito de uma droga que o faz experimentar o
mundo como se fossem diferentes gêneros de filme, com a música pontuando muitas
dessas transições. Cavalgada das
Valquírias, de Richard Wagner, é usada em um momento de ação.
A estranheza de Caleb diante do
caos que irrompe quando Dolores divulga os dados do Rehoboam é pontuada por uma
versão instrumental de Space Oddity de
David Bowie, uma música que trata justamente da melancolia por explorar o
desconhecido e, naquele momento, diante do caos social que se instaura, os
personagens estão entrando em terreno desconhecido. Ou o final do episódio em
que Caleb é confrontado com o horror de saber a previsão da própria morte e
ouvimos os acordes de sintetizadores do tema musical de O Iluminado (1980).
Visuais e simbolismos
Além da música, muito é dito
também através de escolhas simbólicas, como o nome de personagens ou elementos
do universo. As inteligências artificiais Solomon e Rehoboam certamente são
referências bíblicas. Salomão e Roboão foram reis de Israel. Salomão foi famoso
pela sabedoria com a qual governou o reino, mas seu filho Roboão, por outro
lado, rejeitou o conselho dos sábios e as decisões de Roboão, incluindo violenta
repressão, causaram uma divisão do reino de Israel. Na trama de Westworld Solomon foi a primeira IA
criada por Serac e seu irmão. Solomon previu que um colapso social era
inevitável, não importava o quanto se tentasse impedir que os seres humanos
causassem destruição. Serac, acreditando em salvar a humanidade, abandonou
Solomon e criou o Rehoboam, uma IA que faria de tudo para eliminar os
dissidentes e ameaças à harmonia do sistema. A violenta repressão de Rehoboam,
foi o gatilho que Dolores usou para iniciar uma revolução que terminou
justamente com um profundo caos social, espelhando a trama bíblica de Salomão e
Roboão.
A temporada também entrega ótimas
cenas ação, como todo o tiroteio e perseguição do quinto episódio, a luta de
Maeve contra Musashi (Hiroyuki Sanada), o episódio de Maeve e Hector (Rodrigo
Santoro) no Warworld ou o conflito climático entre Maeve e Dolores. Como essa
temporada é a primeira vez que de fato vemos o mundo que existe fora dos
parques e a série nos apresenta a uma Los Angeles que consegue ser
simultaneamente familiar e futurista. Em geral a ficção-científica tenta ir
para futuros muito distantes, onde é fácil criar qualquer coisa que se imagine.
O desafio, no entanto, é em tentar criar um futuro próximo, um mundo que se
parece com o nosso, apenas um pouco mais avançado e essa temporada consegue
isso. A cidade tem carros compactos guiados por inteligência artificial,
trabalhadores robôs exercendo as funções mais braçais e uma arquitetura que
privilegia curvas suaves a superfícies retas.
Personagens mal aproveitados
Se o percurso de Dolores é, em
geral, bem construído, o mesmo não pode ser dito dos demais personagens, muitos
que não tem nenhuma repercussão direta na trama da atual temporada. O
antepenúltimo episódio é todo focado em William (Ed Harris) e apesar do tempo
gasto com ele, o personagem não faz diferença alguma em nada do que acontece na
temporada, com apenas uma cena pós-créditos deixando uma promessa de algo para
a próxima temporada.
O mesmo acontece com Bernard
(Jeffrey Wright) e Stubbs (Luke Hemsworth), cuja correria e viagens por
diferentes lugares nunca rendem nada interessante e também não repercutem sobre
o conflito principal. Assim como aconteceu com William, fica só uma promessa de
que eles serão mais relevantes adiante.
A terceira temporada de Westworld consegue eliminar o hermetismo
da temporada anterior e leva a trama a novos rumos, trazendo uma discussão
consistente sobre humanidade e livre-arbítrio, mas não consegue criar arcos
interessantes para todos os personagens
Nota: 8/10
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