segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Crítica – Lovecraft Country (Parte 1)

Análise Crítica – Lovecraft Country (Parte 1)


Review – Lovecraft Country (Parte 1)
Adaptando o livro Território Lovecraft de Matt Ruff, a série Lovecraft Country traz uma releitura da mitologia criada pelo autor H.P Lovecraft, bem como de vários outros elementos típicos do terror e da fantasia, a partir das experiências da população negra dos Estados Unidos. É um movimento importante não apenas por questões de representatividade, mas por tentar responder a questão do que fazemos com as obras de autores que sabemos terem sido péssimas pessoas?

Lovecraft era racista. Quando digo isso não quero dizer que ele apenas aderia ao racismo estrutural de sua época como a maioria das pessoas brancas que lhe eram contemporâneas. Lovecraft era ativamente racista, adepto a um discurso de supremacia branca que ia muito além do racismo estrutural. Nesse sentido, reapropriar a obra dele a partir da cultura e da vivência negras é um modo de revelar como a obra pode ir além do autor, pode sobreviver às limitações e falhas dele, pode até ser usada para tentar reparar a visão de mundo excludente e preconceituosa que esse autor ajudou a disseminar.

A trama da série se passa nos Estados Unidos da década de 50 e é focada em Atticus (Jonathan Majors), também chamado de Tic. Quando o pai de Tic, Montrose (Michael K. Williams), desaparece misteriosamente ele, a amiga Leti (Jurnee Smolett) e o tio George (Courtney B. Vance) embarcam em uma viagem pelo interior dos EUA. A viagem os colocará em rota de colisão com um antigo e poderoso culto, além de revelar segredos a respeito da família de Tic.

É curioso como cada episódio parece remeter a um tipo de história de terror ou fantasia específicos, com o primeiro episódio funcionando como um filme de monstro, o segundo como um filme sobre cultos macabros ou o terceiro sendo um episódio de casa mal assombrada. Cada episódio também é focado em um personagem específico do amplo elenco que compõe a série, quase funcionando como uma série de antologia. Digo quase porque há a trama principal sempre amarrando muitos elementos desses episódios, então eles não funcionam completamente se vistos de maneira isolada.

Esses elementos de terror e fantasia não são usados apenas como uma mera desculpa para brincar com as convenções dos gêneros narrativos. Cada situação de cada episódio parece remeter diretamente a um elemento da experiência negra nos Estados Unidos com o preconceito, exclusão e exploração. Nesse sentido, o sobrenatural não é usado aqui como mero escapismo, mas como uma manifestação de questões sociais e políticas subjacentes na sociedade estadunidense.

No primeiro episódio, por exemplo, os monstros que aparecem à noite dialogam com o temor que os personagens tem de trafegar à noite por certas partes do país por conta das leis de certos estados que dão plenos poderes à polícia para fazerem o que quiserem com pessoas negras. A perseguição com a polícia para tentar cruzar uma fronteira antes que o sol se ponha é tão tensa quanto as tentativas de sobreviver ao ataque dos monstros no clímax do primeiro episódio.

O segundo episódio e a trama do culto formado exclusivamente por homens brancos que quer usar o sangue de Tic em um ritual para alcançar a imortalidade serve como metáfora para os modos pelos quais a riqueza e prosperidade dos brancos foi construída vertendo o sangue da população negra, explorando suas vidas e suas mortes. Isso fica evidente na cena do ritual, cujas imagens são acompanhadas por uma narração do poema Whitey on the Moon (algo como “branquelo na Lua” em português). 

O poema, composto por Gil Scott-Heron em 1970, fala sobre as péssimas condições de vida da população negra, sempre contrapondo a denúncia de cada estrofe com a fala “e o branco está na Lua”, usando essa oposição para mostrar como a sociedade dos EUA prefere gastar fortunas para colocar uma pessoa na Lua, mas nada para melhorar a vida de certas minorias. As palavras do poema justapostas com as imagens do sangue de Tic sendo extraído do ritual deixam evidente esse processo de prosperidade branca que quer se construir em cima do sacrifício dos negros.

Essa cena em questão também dialoga com a montagem da viagem de Tic, Leti e George no primeiro episódio, na qual as imagens do trio na estrada eram acompanhadas do áudio de um discurso de James Baldwin no qual ele diz que o “sonho americano” é construído em cima às custas da população negra. A fala de Baldwin acompanhada de imagens de atendimento e plateias segregadas em sorveterias e salas de cinema ou publicidades de marcas como Aunt Jemima que fazem pantomima de estereótipos raciais ilustram bem essa visão sobre a sociedade do país.

Já o terceiro episódio usa a trama de casa mal assombrada para falar sobre gentrificação e exclusão social. O fato da casa comprada por Leti, situada em um bairro branco de classe média, ser assombrada por fantasmas que a ameaçam dialoga diretamente com as ameaças que ela recebe dos vizinhos brancos. O que assombra a personagem são literalmente os fantasmas do racismo, que negam à população negra o direito a uma moradia digna e quem o tempo todo relegar essa população a espaços periféricos. O fato do fantasma da casa ser de um racista que matava negros ilustra ainda mais o ponto de vista de que esses subúrbios bucólicos de classe média não eram espaços pensados para serem ocupados pelos negros.

A ideia de um passado que assombra os personagens da série e a população negra de uma maneira geral é algo que também estará presente ao longo de outros episódios da temporada, que serão analisados em partes posteriores dessa crítica a Lovecraft Country.


Confiram aqui as outras partes

Parte 2

Parte 3


Trailer

Um comentário:

Marcelo disse...

Rapaz preciso acordar cedo pra fazer um trabalhão mas vou assistir um capitulo hj...