A trama é centrada em Barbie (Margot Robbie), que vive uma vida perfeita na Barbielândia com outras Barbies e Kens. Um dia Barbie começa a questionar sua própria existência e sua vida colorida passa a perder a graça. Consultando a Barbie Esquisita (Kate McKinnon), a protagonista que isso acontece por causa da conexão emocional entre Barbie e a garota que está brincando com ela, sendo necessário que Barbie vá ao mundo real ajudar a garota. Na empreitada, a boneca é acompanhada por Ken (Ryan Gosling), que se surpreende ao descobrir que ao contrário da Barbielândia, o mundo real é controlado por homens.
Esse contraste entre o mundo da Barbie e o mundo real serve para o filme confrontar a dissonância entre as aspirações da boneca e a razão pela qual ela foi criada e a realidade de como o capitalismo corporativo se apropriou do feminismo tanto para reduzi-lo a um produto como para usar esse discurso para dar uma impressão de mudança quando o estado das coisas se mantem o mesmo. Isso fica evidente quando Barbie vai à sede da Mattel e encontra uma diretoria toda controlada por homens, incluindo o presidente (Will Ferrell), mostrando como são os homens que decidem como as mulheres vão se ver.
Esse confronto entre aspirações e realidade também é visto na relação de Barbie com a dupla de mãe e filha Gloria (America Ferrera) e Sasha (Ariana Greenblatt), com Sasha contando à Barbie como cria expectativas irreais de beleza em várias garotas e as faz se sentirem inadequadas ao mesmo tempo em que Gloria recorda o quanto a boneca a inspirou em fazer a diferença para as mulheres. Assim, o filme reconhece o legado complexo da boneca, entendendo que apesar das ideias aspiracionais ela também contribui para a manutenção de elementos do patriarcado.
Apesar das críticas à trajetória da boneca e sua fabricante, a condução de Greta Gerwig jamais se comporta como se ela fosse superior ou estivesse acima do material (como aconteceu com a Lana Wachowski em Matrix Ressurections) reconhecendo que ela é parte dessa grande engrenagem corporativa, que por mais artístico que seja seu filme é uma longa publicidade de brinquedos e trata tudo isso com um senso de autoironia (diferente do cinismo de coisas como Emoji: O Filme). Isso é visível na cena em que Barbie diz que se sente feia e a Narradora (Helen Mirren) interrompe dizendo que a escalação da atriz Margot Robbie foi uma péssima escolha para passar esse sentimento ao público, lembrando que apesar de todo o discurso sobre vidas e corpos de mulheres reais ainda estamos diante de celebridades cuja aparência e estilo de vida não pode ser equiparada à maioria das pessoas, reconhecendo contradições inerentes desse tipo de discurso midiático massivo.
O arco do Ken serve de metáfora para compreendermos como o patriarcado é gerido por homens inseguros, que agem para diminuir as mulheres para esconder as próprias inseguranças e que, no fundo, também são prejudicados pelos ideais anacrônicos de masculinidade que tentam reproduzir. Ryan Gosling, aliás, merece elogios pelo modo como faz parecer bem real um personagem que no papel é extremamente caricato e investe Ken de conflitos emocionais bem genuínos sem deixar de explorar o lado patético do personagem. Na verdade, muito da graça de Ken vem do modo como os diálogos ridículos do personagem são interpretados por Gosling com a energia e seriedade de quem está encenando um texto de Tennessee Williams.
Toda a maneira com a qual Greta Gerwig conduz o filme equilibra muito bem a comédia e uma lógica exagerada de desenho animado com cenas de emoção bem verdadeiras que transmitem com sinceridade a sensação de ser ver como mulher em um mundo patriarcal e tudo que isso enseja. Isso é visível no momento em que Gloria explica todas as contradições do que é ser mulher e tudo que lhe é demandado ou a conversa final da Barbie com sua criadora.
É impressionante a fluidez com o qual o filme consegue passar de uma cena como a absurda perseguição à Barbie dentro do prédio da Mattel, que parece algo saído de um episódio do Scooby Doo, ou um exagerado número musical com Ken que evoca as coreografias caledoscópicas dos musicais de Busby Berkeley das décadas de 1930 e 1940, para momentos de impacto emocional bastante bastante verdadeiro. Não são poucos filmes que conseguem sair de uma extravagância cartunesca ou de um humor ridículo para questionamentos existenciais sobre como o ato de estar vivo por si só ser apavorante e ainda manter um senso de coesão. Muito pode ser creditado ao texto e direção de Gerwig, mas o elenco, em especial o modo como Margot Robbie transita entre otimismo ingênuo, desencanto e pânico existencial ajudam a fazer todo o arranjo maluco do filme funcionar.
Caminhando entre o surreal e a
realidade, entre o humor e o drama, entre idealizações e pragmatismo Barbie faz um complexo exame do
complicado legado cultural do brinquedo que leva seu título.
Nota: 8/10
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