A trama começa quando um exercício militar russo com um submarino furtivo dá errado e todos à bordo morrem. O incidente chama atenção das comunidades de inteligência ao redor do mundo que creem que a IA bélica que guiava os sistemas do submarino se tornou consciente e está se espalhando pelo ciberespaço, sabotando governos ao redor do mundo e se autodenominando como a Entidade. A única maneira de detê-la parece ser um conjunto de chaves que Ethan (Tom Cruise) fica incumbido de achar. Ao descobrir que o governo quer controlar a IA ao invés de destruir, Ethan e sua equipe decidem agir por conta própria, ficando na mira do governo e também do misterioso Gabriel (Esai Morales), que age como um arauto da Entidade no mundo real e tem uma ligação passada com Ethan.
A premissa em si não tem nenhuma novidade. Séries como Westworld ou Person of Interest já exploraram isso, mas ainda assim o texto e a direção de Christopher McQuarrie conseguem injetar um clima constante de paranoia e desconfiança. Há um senso hitchcockiano de tensão conforme esses personagens navegam por um ambiente em que a verdade é mais maleável do que nunca e mesmo nossos sentidos não são confiáveis, já que o inimigo prevê nossos movimentos, nos conhece intimamente e pode fabricar qualquer tipo de som ou imagem que apele para nossas emoções. Desde o primeiro filme, dirigido por Brian DePalma, a franquia não conseguia apresentar um sentimento tão inquietante de paranoia.
Parte do motivo dessa inquietação ser tão real é porque por mais exagerada que seja a trama, ela se estrutura em cima de inquietações bem reais e atuais sobre o uso de inteligências artificiais e como ambientes online permitiram que informações falsas se disseminassem e fossem aceitas com facilidade ao ponto em que a verdade enquanto consenso soa cada vez mais difícil de alcançar. Fechados em nossas bolhas digitais cada um acredita na verdade que valida suas crenças e isso facilita a desestabilização de sociedades e sistemas políticos, com a narrativa conseguindo materializar muito bem essas ansiedades contemporâneas.
Se o filme anterior colocava em teste as convicções de Ethan de que a vida de nenhum companheiro valia o sucesso da missão, aqui a narrativa leva esse teste ao seu invariável ponto de ruptura, colocando o protagonista em um extremo que até então não tínhamos visto antes. O impacto disso acontece por conta de já termos acompanhado essa equipe há muito tempo e vimos como a relação entre Ethan e personagens como Luther (Ving Rhames), que segue como a consciência e coração da equipe, Benji (Simon Pegg) e Ilsa (Rebecca Ferguson) evoluiu e construiu um forte laço de amizade entre eles. Sem isso, os riscos e sacrifícios apresentados na trama não teriam impacto algum.
Em geral não gosto quando tramas longevas resolvem inventar do nada novas informações sobre o passado de um personagem. Na maioria das vezes soa como um expediente gratuito para enfiar de qualquer jeito um conflito na narrativa, no entanto aqui, ao mencionar o passado de Ethan (imagino que a parte 2 deve explorar mais isso), o filme consegue nos fazer entender melhor de onde vem o ímpeto do protagonista em não deixar ninguém para trás e amplia a tensão do embate entre ele e Gabriel. Afinal, Gabriel não é apenas o arauto de uma entidade incorpórea e poderosa ele é alguém com contas a acertar com Ethan e esse elemento pessoal pode fazer o herói colocar tudo a perder.
Não é acidente, por sinal, que o vilão use como codinome o do anjo que trazia mensagens divinas aos mortais, já que ele próprio age como mensageiro de uma criatura onisciente e onipresente. Esai Morales traz uma aura de mistério e gravidade a Gabriel, alguém que nunca sabemos exatamente o que motiva, mas percebemos de imediato que ele será implacável no modo como age. Ele funciona como o oposto de Ethan, algo evidenciado pelo modo como os dois personagens lidam com aliados e antagonistas. De um lado Ethan a deixa uma inimiga viver mesmo quando tinha todas as razões para matá-la, de outro Gabriel mata uma aliada mesmo quando, no momento, não havia motivo para tal.
Outra personagem que entra neste sétimo filme é a ladra Grace (Hayley Atwell), que acaba recebendo mais atenção e desenvolvimento do que eu imaginaria. Se no inicio ela parece uma mercenária interessada apenas em dinheiro, o contato com a equipe de Ethan e a ciência do que está em jogo se a Entidade conseguir o quer levam a personagem a reavaliar sua conduta. É um tipo de arco de redenção que nem sempre é bem construído, mas aqui o texto e a interpretação de Atwell nos deixam ver as dúvidas surgindo internamente na ladra e como as convicções de Ethan vão fazendo sentido para ela conforme colabora com o espião. O arco de Grace e o modo como ela é inspirada por Ethan também nos ajuda a entender porque a entidade o considera uma ameaça tão grande.
A ação continua apresentando a mesma energia insana dos filmes anteriores, principalmente pela cuidado em usar mais efeitos práticos do que computação gráfica e colocar os atores, em especial Cruise, para fazer boa parte das cenas de ação. O filme inclusive faz questão de mostrar para nós que são de fato os atores em cena através de escolhas bem específicas de posicionamento de câmera ou figurino. O fato de Ethan usar um visor e não um capacete na climática cena do salto de moto soa como uma decisão deliberada de deixar o espectador ver o rosto de Tom Cruise durante toda a sequência para entender que é o ator de fato ali. Do mesmo modo, em uma perseguição em Roma, o filme recorre a câmeras na lateral do carro para mostrar Hayley Atwell ao volante sem deixar de mostrar a ação ao redor dela, situando a atriz no espaço da ação.
Claro, não tenho a ilusão de que Atwell, Cruise, Ferguson ou qualquer outro membro do elenco fez absolutamente tudo nas cenas de ação, certamente a produção recorreu a dublês, cabos, computação gráfica e outros recursos. O que elogio é o esforço de nos fazer ver os atores em meio a ação, diferente, por exemplo, de Velozes e Furiosos 10 em que praticamente só vemos os atores ao volante em tomadas internas no carro ou em planos abertos nos quais a paisagem externa ao carro é claramente chroma key, quebrando a ilusão de que aqueles atores estão realizando aquelas façanhas.
A direção de McQuarrie nunca perde o senso de coesão de espaço e tempo, mesmo em sequências grandiosas, como a já citada perseguição em Roma, nunca perdemos a noção de quem está aonde ou fazendo o quê. O diretor é igualmente eficiente em momentos de ação mais contidos, como a intensa luta entre Ethan e dois mercenários em um beco apertado usando enquadramentos que ampliam a sensação de claustrofobia e espaço reduzido sem jamais soar confusa ou excessivamente picotada.
Como é a primeira parte de uma
aventura maior, o filme encerra em aberto, embora deixe um senso de conclusão
de um capítulo que é mais satisfatório que os desfechos abruptos de Através do Aranhaverso ou de Velozes e Furiosos 10. Mesmo sem saber
como a história acaba, Missão Impossível:
Acerto de Contas Parte 1 entrega uma excelente aventura que apela para
temores bem contemporâneos sobre vida digital criando um senso de paranoia que
há tempos a franquia não apresentava, construindo uma aventura que testa os
limites de seus personagens tanto em termos físicos quanto suas convicções.
Nota: 9/10
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