O primeiro episódio já nos lembra do caráter surrealista da série com a trama de Darius (Lakeith Stanfield) sendo perseguido por uma senhora branca de cadeira de rodas que tenta esfaqueá-lo por achar que ele roubou uma airfryer de uma loja quando Darius na verdade comprou o produto. Tal como uma versão geriátrica de Jason, a velhinha sempre aparece do nada em sua cadeira de rodas sempre que o personagem acha que está seguro.
Do mesmo modo, a trama de Alfred/Paper Boi (Brian Tyree Henry) envolve ele seguindo estranhas pistas que ele crê que um falecido rapper deixou em seu último álbum. As pistas o levam até o funeral do músico no qual ele descobre ser o único lá, já que as informações do funeral estavam cifradas nas pistas do disco. Toda a narrativa parece comentar sobre um tipo de arte que se propõe a ser cheia de camadas profundas de interpretação, mas que acaba sendo tão opaca em seus sentidos que praticamente ninguém os alcança e o artista termina sem ninguém o apreciar.
O segundo episódio é um dos melhores da temporada ao focar em sessões de terapia de Earn (Donald Glover) e o modo como uma vida lidando com o racismo o tornaram uma pessoa movida por rancor e com dificuldade de confiar nos outros. São cenas em que Glover fica diante da câmera por longos takes com poucos cortes que servem para realçar o peso e dano psicológico que tudo isso causou em seu personagem. Paralelamente o episódio conta a história de uma mulher branca de meia idade cujos livros infantis foram descobertos por um poderoso agente literário e agora ela está prestes a obter sucesso. O modo como essas duas narrativas convergem é surpreendente e mostram como Earn subestimou as palavras de seu terapeuta ao mesmo tempo em que demostra como o personagem leva seu rancor a extremos.
O terceiro episódio usa a trama de Alfred tentando migrar de cantor para agente de novos talentos para comentar tanto sobre o embranquecimento do rap e da cultura negra como também sobre a “tiktokzação” do mundo da música em que canções são feitas meramente para gerar virais com dancinhas e memes e não para ser música. O fato do jovem talento agenciado pelo personagem morrer assim que ganha notoriedade comenta sobre o predatismo midiático e também sobre como é fugaz o sucesso desses artistas que viralizam e rapidamente ganham fama, mas logo são esquecidos.
A ideia de como um viral bobo de internet pode mudar a vida de alguém é ecoada no sexto episódio em que Alfred teme estar na mira de um serial killer que está matando todas as pessoas que fizeram vídeos dançando uma música de Soulja Boy. No mesmo episódio a busca de Earn e Darius por um exemplar raro de tênis da Nike mostra como a indústria da moda incorporou a ideia de fabricar em números limitados de propósito para ampliar o valor de revenda e os extremos que colecionadores como os dois personagens vão para conseguir o que querem mesmo sabendo que é um esquema óbvio para arrancar dinheiro deles.
O quinto episódio leva Vanessa (Zazie Beetz) e a filha para os estúdios Chocolate. Um grande complexo de produção audiovisual voltado para fazer filmes e séries para o público negro e com artistas negros, tudo controlado pelo elusivo produtor Mr. Chocolate (Donald Glover). Vanessa está lá para gravar uma pequena participação, mas Mr. Chocolate se interessa pela filha dela, dando à menina papéis em diferentes produções e colocando a criança para trabalhar sem parar. Vanessa se incomoda tanto com a pesada rotina de trabalho quanto com a maneira que as produções de Mr. Chocolate se limitam a reproduzir clichês problemáticos sobre a população negra.
Considerando a natureza das produções, bem como o visual e conduta de Mr. Chocolate a impressão é que o episódio é uma crítica direta às produções de Tyler Perry, que de fato construiu um estúdio multibilionário na área rural de Atlanta. Tal como Mr. Chocolate, os filmes de Perry são alvo de discussão por conta dos estereótipos contidos em seus filmes e como os clichês neles reproduzidos desumanizam a população negra que ele diz estar empoderando.
Também ponderando sobre representação negra no entretenimento está o oitavo episódio que traz um falso documentário sobre os bastidores de Pateta: O Filme (1995). O episódio parte de discussões que tomaram a internet anos atrás que interpretavam o longa animado da Disney como representação de paternidade negra e como o filme é carregado de códigos culturais ligados à comunidade negra dos EUA. Disso Atlanta tenta extrapolar: e se a Disney realmente quisesse fazer de Pateta: O Filme um filme negro, o que aconteceria?
O resultado do episódio é um comentário mordaz e hilário de como a indústria se apropria de pautas sociais para dar uma ilusão de progressismo sem, no entanto, oferecer transformações reais ou críticas consistentes. O material também remete ao racismo real que está por trás de muitos desses personagens antigos, trazendo citações do criador real do Pateta que evidenciam como o personagem foi criado para reproduzir estereótipos racistas sobre negros.
O sétimo e o nono episódio trazem histórias mais introspectivas focadas em personagens específicos. O sétimo foca na relação de Earn e Van conforme eles vão acampar com a filha e Earn tenta convencer Van a mudar com ele para Los Angeles. Van reluta em aceitar a mudança, temendo que Earn só esteja lhe propondo isso por conta da filha deles e do medo de ficar sozinho em uma nova cidade. O episódio dá espaço para os dois se reconectarem e redescobrirem o sentimento que tem um pelo outro. Também dá espaço para o típico surrealismo da série conforme Van leva a filha para caçar uma narceja (que não existe naquela floresta) e a menina volta tendo prendido alguma criatura bizarra que de fato estava na mata.
O nono episódio é focado em Alfred vivendo na quietude de sua fazenda cultivando maconha e tentando consertar um trator antigo à beira da estrada. As coisas se complicam quando um javali selvagem começa a invadir a plantação para comer as plantas de Al. De início o rapper ri dos alertas que o balconista de uma loja lhe dá sobre a ferocidade dos javalis, mas ele experimenta em primeira mão o perigo desses animais e acaba sobrevivendo por conta de compras feitas on-line.
O último episódio acompanha Earn, Van e Al conforme eles vão a um restaurante japonês que pertence a um chef negro. Chegando lá eles descobrem que o lugar oferece uma fusão gastronômica entre comida negra e japonesa. Enquanto os pratos são servidos, Al e Van reclamam da comida enquanto simultaneamente olham para uma lanchonete de fast food Popeyes do outro lado da rua e desejam seus sanduíches de frango frito. O chef do restaurante percebe a atitude deles e inicia um longo e exasperado discurso sobre como ele faz sushi exatamente como aprendeu dos mestres japoneses e como ele tenta mesclar isso com a cultura que aprendeu na comunidade negra.
Desapontado o chef comenta como todos os clientes negros que vão ali reclamam de sua comida e preferem ir ao Popeyes, um fast food pertencente a empresários brancos que vendem à população negra uma versão estereotipada do que os brancos acham que é a culinária negra. É um comentário que reflete como o capitalismo contemporâneo, inevitavelmente construído por brancos, vende à população negra um pastiche de sua própria cultura de modo a mantê-los presos nos mesmos estereótipos e também distanciar essa população de manifestações de sua cultura que os estimule intelectualmente a pensar as desigualdades e problemas da comunidade negra.
Em paralelo a isso o episódio final coloca Darius em uma trama que faz jus a natureza surrealista da série conforme ele visita um spa com uma câmara de privação sensorial para relaxar. Ao longo do episódio coisas bizarras acontecem com ele e repetidas vezes ele acorda exasperado ainda dentro do tanque. Ao final do episódio Darius reencontra os outros três personagens no restaurante japonês e insiste que tudo ainda é um sonho dele dentro da câmara. Earn e os demais insistem que aquilo é real e o episódio encerra bem no momento em que estava prestes a dar uma resposta a esse dilema.
A verdade é que não importa se aquilo era real ou não. Independente da resposta Darius parece satisfeito conforme vemos seu rosto sorrir ao contemplar a resposta antes dos créditos subirem. O que importa não é a realidade presumida em que esses personagens vivem, mas como todas as experiências que acompanhamos ao longo da série, por mais absurdas ou surrealistas que soem, nos fazem encontrar sentido nas nossas experiências no mundo real. Em como toda a maluquice construída ao longo dos quatro anos de Atlanta traz verdades sobre o mundo que vivemos e nos faz repensar uma série práticas e vivências do nosso cotidiano, com tudo isso continuando a reverberar conosco muito tempo depois da série acabar.
A temporada final de Atlanta é uma excelente desfecho para a
série afro-surrealista que não só traz muitas reflexões complexas sobre
questões de raça na nossa contemporaneidade como também encontra um crescimento
genuíno nas jornadas de seus personagens.
Nota: 10/10
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