segunda-feira, 16 de junho de 2008
Rapsódias Revisitadas - Hulk de Ang Lee
Depois de assistir ao Incrível Hulk, parei para rever o filme o Ang Lee e devo dizer que o filme subiu ainda mais no meu conceito. Ele perpassa pelas conveções tradicionais dos filmes de quadrinhos e é uma obra mais dotada de personalidade do que o divertido novo filme. É um típico filme do diretor chinês, excelente fotografia, com planos dando ênfase na paisagem, contemplativo e racional. A película de Ang Lee desvirtua alguns elementos dos quadrinhos mas as mudanças de encaixam na história que o diretor queria contar(quem disse que tem que ser igual? O Iluminado de Stanley Kubrick não tem nada a ver com o livro de Stephen King e ainda assim é um dos melhores filmes de terror de todos os tempos)
O Hulk de Ang Lee é apenas uma figura de linguagem, uma metáfora para a bestialização da figura humana diante sua inedaquação aos padrões vigentes à sociedade, nesse caso a sociedade americana. Ang Lee coloca o dedo na ferida da cultura americana de deuses e idiotas, de winners e losers, onde aquele que não é o melhor ou extraodinário é visto como um pária, uma coisa, uma criatura indigna e bestial. Essa bestialização se dá a partir do momento que o indivíduo abre mão de todos os princípios e de todas as convenções sociais para tentar romper com o estigma de perdedor e atingir um status quo mais elevado.
É nesse momento que entra David Banner, personagem de Nick Nolte, em nome de realizar seu experimento de regeneração humana, ele não hesita em usar a si mesmo e seu filho como cobaia sem se preocupar com os riscos, ele não hesita em destruir a base militar na qual trabalhava para proteger seu trabalho e sua única chance de adquirir renome e não se importa com o fato de ter que matar sua esposa ou seu filho para alcançar o que quer, nesse ponto David Banner é o verdadeiro monstro da história, não o Hulk. Ele quer superar as fronteiras do homem, mas nega o fato de que além de suas próprias fronteiras existem outros homens, como a própria Betty Ross diz para ele em certa altura do filme. Deste modo, Ang Lee nega também os pressupostos filosóficos enunciados por Nietszche sobre o übermensch, ou seja superar o próprio homem não significaria evolução ou superioridade e sim uma perda de identidade e retorno à barbárie.
O Hulk mostra os efeitos da pressão da sociedade sobre o indivíduo comum, sob pressão ele cede e adquire um comportamento primitivo e fora de controle, surta(da mesma forma que os adolescentes americanos que entram em suas escolas fuzilando seus colegas). Reparem que quando Bruce Banner se transforma pela primeira vez ele está abalado pelo fracasso de seu experimento(constituindo uma pressão psicológica interna), que o bombardeou com radiação gama, ao mesmo tempo que sofre com a presença do major Glenn Talbot(Josh Lucas[aliás, ele seria um bom Capitão América]) que ameaça tomar o controle de seu laboratório e de seu trabalho(constituindo pressão psicológica externa). É diante de todos esses fatores endógenos e exógenos que se dá a metamorfose de Banner, o homem comum que é esmagado pelas cobranças da sociedade e fica fora de si. É nesse ponto que entram também os polêmicos cães hulk, para mostrar o nível de involução que o ser humano atinge devido às cobranças excessivas e até abusivas das forças sociais, ele se torna tão bárbaro e animalesco como qualquer animal irracional, provocando espanto na mesma sociedade que o criou, nesse caso Betty Ross, que trabalhava com ele na mesma pesquisa e é ex-namorada tanto de Banner quanto de Glenn Talbot, que queria tomar sua pesquisa. Betty observa atônita a criatura que Bruce Banner se tornou. Tudo bem, eu admito que os efeitos dos cachorros foram porcamente feitos, mas isso de modo algum tira o impacto do poderoso texto de Ang Lee.
Entra o general Ross, ele é a crítica de Lee ao militarismo norte americano, sempre paranóico e preocupado com ameaças externas, abusando de seu poder para tomar decisões arbitrárias e muitas vezes preconceituosas. Para os que não se lembram, Ross inicialmente põe Bruce sob custódia(antes de saber que ele é o Hulk) simplesmente por ele ser filho de David Banner e trabalhar no mesmo campo de pesquisa que ele, ou seja sem nenhuma base factual. Na mesma época os Estados Unidos invadiam o Iraque também sem base factual, baseados apenas em suposições de posse de tecnologia bélica. Ross é um reflexo desse governo americano que constrói suas próprias verdades e impõe de forma truculenta se ponto de vista com base apenas em sua conveniência. E aquela que consegue fazer Ross abandonar essa postura e assumir um posicionamento mais racional é exatamente Betty Ross.
A cientista, portanto, ultrapassa o tradicional estereótipo de donzela em perigo e se torna a voz da razão em meio a um bando de homens que parecem ignorá-la em nome de suas aspirações. Papel este que condiz com a visão oriental da mulher como organizadora e conciliadora dos conflitos dos homens. Com certeza nas culturas orientais ninguém deixaria uma mulher opinar tão abertamente, mas como tudo mais no filme, essa é apenas uma representação metafórica.
Além de tudo isso o filme conta com cenas de ação muito bem executadas como toda a sequência da fuga do deserto. Esta, representa também a ira de um homem excluído e bestializado contra as forças repressivas da autoridade do Estado. Ao final de tudo, novamente é Betty Ross que traz de volta a razão.
O desfecho é uma das poucas ressalvas, juntamente com os efeitos porcos dos cães, que faço ao filme. A luta final entre o Hulk e seu pai, agora transformado em Homem-Absorvente(que existe nas HQs, por sinal) representando a ambição descontrolada que engolfa e absorve tudo a sua volta, me parece um tanto desnecessária, o confronto entre eles poderia se resumir apenas à cena com os dois sentados diante da vigilância do exército. Assim como no final da luta David Banner tentaria absorver o Hulk, mas seria destruído pela excessiva energia do Hulk, representando o potencial do homem comum que simplesmente é ignorado pela sociedade e até por ele mesmo devido aos mecanismos repressivos e excludentes da mesma.
A ousada edição do filme é simplesmente soberba, dividindo a tela em quadros Ang Lee quer dar ao expectador a experiência semelhante à de uma HQ e até hoje não entendi como esse trabalho não foi sequer indicado a um Oscar. É de compreender que as grandes massas não tenham gostado do filme, afinal exige bastante raciocínio da parte do público além de alguma bagagem intelectual para analisar as camadas mais profundas da obra, coisa que a geração MTV ávida por quebra-pau e CGI não quer ou não sabe fazer. Sendo assim explicado o fracasso financeiro do filme(apesar de que a bilheteria de eestréia desse Hulk foi superior ao do novo filme, joguem no Google caros boêmios).
Ang Lee entrega um filme pessoal, apaixonado e maduro. Pode não ser o filme que os fãs esperavam, mas sua qualidade cinematógrafica é inegável. A obra de Ang Lee supera, artisticamente e cinematograficamente, de longe o filme impessoal do diretor Louis Laterrier(que pode é até uma boa adaptação de HQ, mas como cinema puro e simples é apenas mediano). Hulk de Ang Lee é rapsódia que sem dúvida merece ser revisitada.
Meia lua + soco = FATALITY na cara dos Fanboys(quero ver alguém encontrar tanta profundidade no filme do Laterrier)
Nenhum comentário:
Postar um comentário