quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Crítica - Cinquenta Tons de Cinza


Cinquenta Tons de Cinza não é um filme para qualquer um. Não, não estou me referindo ao tão alardeado conteúdo sexual que passa longe de ser excitante, chocante ou interessante. Falo porque desde o livro que o originou trata-se de um produto completamente pensado e desenhado para um público bastante preciso, com gênero, faixa etária e comportamento bem determinado e se você não se encaixa perfeitamente no perfil de leitor visado pela autora E. L. James, essa narrativa tem pouco o que te interesse. Isso, no entanto, não é o que torna a obra tão repreensível ou problemática, mas o olhar que lança sobre seu tema principal.

A trama acompanha a jovem Anastasia Steele (Dakota Johnson) que recebe de uma colega de faculdade a incumbência de entrevistar o jovem magnata das telecomunicações Christian Grey (Jamie Dornan). A jovem se sente intimidada pelo empresário que parece se fascinar por ela. Aos poucos eles se envolvem e ela descobre que ele é um praticante de sadomasoquismo e a convida para uma relação de dominador/submissa e conforme tudo avança ela passa a questionar esse estilo de vida.

O design de produção é talvez o elemento do filme que se sai melhor. O universo de luxo e requinte de Grey é muito bem construído, tudo é opulento, ostensivo, mas ao mesmo tempo discreto e suave, com exceção, claro, da "sala de brinquedos" que traz tantos aparelhos e itens que soa bastante intimidadora. No entanto todo o restante é bastante questionável.

O primeiro problema é que nunca acreditamos no interesse à primeira vista de Grey, principalmente porque ele começa a entrevista demonstrando desprezo apenas para segundos depois estar completamente encantando por ela. Nunca temos um motivo crível para essa fascinação, claro ela é bela, mas beleza existe aos montes e o filme falha em demonstrar o que Grey vê nela. Não ajuda o fato de Anastasia ser uma personagem completamente vazia, desprovida de qualidades, personalidade ou interesses. Não sabemos nada sobre essa jovem, quem ela é, o que a move, nada. Ela é uma folha em branco para que as leitoras (e leitores) se coloquem em seu lugar e fantasiem sobre serem arrebatadas pelo sr. Grey.

Grey, por sinal, é definido apenas pela sua prática sexual, que é usada para justificar sua natureza de empresário controlador, o que é uma generalização falsa, já que o fato de alguém sentir prazer com a dominação e o sadomasoquismo não implica que a pessoa tenha uma conduta controladora em sua vida cotidiana. Na verdade, o filme praticamente o transforma em um psicopata que controla e segue Ana o tempo todo como um stalker possessivo e, de novo, faz uma associação equivocada entre fetiche sexual e desvio de caráter.

Sim, em relações de dominador/submisso pode ocorrer do dominador dizer ao submisso o que ele deve comer ou vestir, mas isso não é o tempo todo, todo dia, a semana inteira, é algo que ocorre na intimidade e de modo consensual, o dominador não é um perseguidor que controla a vida inteira da submissa como um serial killer. Isso piora com a escolha de Jamie Dornan em manter os olhos fixos o tempo inteiro quase sem piscar como uma espécie de Hannibal Lecter sarado e apenas o torna ainda mais caricato. Os diálogos são de constrangedores de ruins e parecem saídos diretamente desses romances eróticos baratos vendidos em bancas de revistas, sendo que muitas vezes descambam para o humor involuntário.

Tudo isso piora devido à química pobre entre os dois protagonistas, que parecem estar sempre incomodados e desconfortáveis com a presença do outro. Até tentam compensar nas cenas de sexo, mas recorrem a um exagero no qual cada mínimo toque do amante produz sonoros gemidos e faz seus corpos se contorcerem completamente de prazer, tal qual num pornô softcore ruim, daqueles que passavam no extinto Cine Privê da Band, mesmo as cenas com sadomasoquismo demasiadamente comportadas. O sexo falha em gerar excitação, incômodo ou repulsa (ou até os três juntos) é frígido, mecânico, passando longe da intensidade de filmes sobre romances tórridos como 9 1/2 Semanas de Amor (1986), inclusive há uma cena envolvendo gelo que parece copiada diretamente do filme estrelado por Mickey Rourke.

A trama se desenvolve de modo tão morno quanto suas cenas de sexo, falhando em criar qualquer conflito ou tensão entre os protagonistas e isso ocorre apenas nos minutos finais quando o filme encerra abruptamente para deixar o gancho para os próximos. Entre uma cena de sexo e outra acontece pouco de interessante além de diálogos expositivos sobre as práticas sadomasoquistas.

Mas o pior do filme é mesmo o modo quase que preconceituoso com que o filme trata o BDSM e o fetiche por dominação e submissão. Como já falei, o filme constantemente tenta associar o fetiche de Grey a desvios de caráter, como esse modo de expressar a sexualidade fosse apenas possível por pessoas que sofreram grandes traumas (como Grey) ou são moralmente corrompidas (como a mulher que o abusou). Tanto que o filme sempre contrapõe as preferências do personagem com a palavra "normal" como em "sexo normal" ou "relação normal".

Palavras neutras como "tradicional", "comum" ou "ortodoxo" poderiam ser utilizadas, mas ao optar pela contraposição com "normal" o filme claramente sugere que há algo de anormal ou aberrante com o personagem e que sua conduta é errada e antinatural. Nem preciso dizer o quanto essa perspectiva é retrógrada, conservadora e preconceituosa, afinal cada indivíduo possui sua maneira de expressar sua sexualidade e experimentar prazer e existem tantas sexualidades quanto há seres humanos no mundo. Tratar o sexo sob esse juízo de valor de que existem práticas mais ou menos corretas é completamente equivocado, o que duas pessoas fazem de modo consensual e íntimo para sentir prazer não cabe a ninguém julgar.

A isso soma-se a ideia de que por causa de sua conduta sexual o personagem seja incapaz de amar ou de ser romântico, como se seu fetiche automaticamente o transformasse em um lascivo monstro insensível e sem empatia o que é uma generalização infundada, o fato de alguém sentir prazer entre quatro paredes com essas práticas de dominação nada tem a ver com a capacidade afetiva do indivíduo. O fato do personagem ser aos poucos "curado" de sua insensibilidade pelo amor de Anastasia, como se a prática do sexo sadomasoquista pudesse ou precisasse ser "curada". Como se houvesse um sexo "do bem" e outro "do mal" que precisasse ser combatido e erradicado. Tanto que no final a protagonista parte, não apenas por não se sentir confortável com as práticas de Grey (o que seria compreensível), mas por julgar sua conduta sexual com vil (embora sua conduta fora do sexo seja), como se ela fosse moralmente superior por não aceitar esse tipo de coisa.

Além disso apresenta uma visão equivocada da relação entre dominador e submissa como se fosse algo unilateral, como se apenas o dominador sentisse prazer ou escolhesse as atividades quando na verdade o submisso também age do modo que age porque ele quer isso, porque ser submisso o excita e lhe dá prazer. Lidar com esse tipo de relação deve ser uma constante troca e exige bastante entendimento entre as partes na qual ambos buscam o prazer mútuo, nunca uma relação de posse ou de prazer unilateral. Ao invés disso trata o BDSM como sinônimo de patologia e abuso da(o) parceira(o).
 
Felizmente o cinema já produziu olhares muito mais honestos sobre a questão como Secretária (2002), estrelado por Maggie Gyllenhaal (e curiosamente o dominador também se chama Sr. Grey), que consegue ser mais erótico (usando menos nudez, diga-se de passagem) e mais chocante que este  filme. Além disso entende a complexidade e as nuances desse tipo de prática, mostra como os praticantes deste tipo de atividade podem ter um relacionamento afetivo como qualquer outro sem abrir mão de seus fetiches.

Assim sendo, Cinquenta Tons Cinza se revela um romance erótico extremamente moroso e frígido, que se prejudica por não parecer compreender verdadeiramente o universo que quer nos mostrar, apresentando uma visão demasiadamente pudica e conservadora sobre a prática do BDSM.

Nota: 2/10

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