Cinquenta Tons de Cinza não é um filme para qualquer um. Não, não estou me
referindo ao tão alardeado conteúdo sexual que passa longe de ser excitante,
chocante ou interessante. Falo porque desde o livro que o originou trata-se de
um produto completamente pensado e desenhado para um público bastante preciso,
com gênero, faixa etária e comportamento bem determinado e se você não se
encaixa perfeitamente no perfil de leitor visado pela autora E. L. James, essa
narrativa tem pouco o que te interesse. Isso, no entanto, não é o que torna a
obra tão repreensível ou problemática, mas o olhar que lança sobre seu tema
principal.
A
trama acompanha a jovem Anastasia Steele (Dakota Johnson) que recebe de uma
colega de faculdade a incumbência de entrevistar o jovem magnata das
telecomunicações Christian Grey (Jamie Dornan). A jovem se sente intimidada
pelo empresário que parece se fascinar por ela. Aos poucos eles se envolvem e
ela descobre que ele é um praticante de sadomasoquismo e a convida para uma
relação de dominador/submissa e conforme tudo avança ela passa a questionar
esse estilo de vida.
O
design de produção é talvez o
elemento do filme que se sai melhor. O universo de luxo e requinte de Grey é
muito bem construído, tudo é opulento, ostensivo, mas ao mesmo tempo discreto e
suave, com exceção, claro, da "sala de brinquedos" que traz tantos
aparelhos e itens que soa bastante intimidadora. No entanto todo o restante é
bastante questionável.
O
primeiro problema é que nunca acreditamos no interesse à primeira vista de
Grey, principalmente porque ele começa a entrevista demonstrando desprezo
apenas para segundos depois estar completamente encantando por ela. Nunca temos
um motivo crível para essa fascinação, claro ela é bela, mas beleza existe aos
montes e o filme falha em demonstrar o que Grey vê nela. Não ajuda o fato de
Anastasia ser uma personagem completamente vazia, desprovida de qualidades,
personalidade ou interesses. Não sabemos nada sobre essa jovem, quem ela é, o
que a move, nada. Ela é uma folha em branco para que as leitoras (e leitores) se coloquem em seu lugar e fantasiem sobre serem
arrebatadas pelo sr. Grey.
Grey,
por sinal, é definido apenas pela sua prática sexual, que é usada para
justificar sua natureza de empresário controlador, o que é uma generalização
falsa, já que o fato de alguém sentir prazer com a dominação e o sadomasoquismo
não implica que a pessoa tenha uma conduta controladora em sua
vida cotidiana. Na verdade, o filme praticamente o transforma em um psicopata
que controla e segue Ana o tempo todo como um stalker possessivo e, de novo, faz uma associação equivocada entre
fetiche sexual e desvio de caráter.
Sim,
em relações de dominador/submisso pode ocorrer do dominador dizer ao submisso o
que ele deve comer ou vestir, mas isso não é o tempo todo, todo dia, a semana
inteira, é algo que ocorre na intimidade e de modo consensual, o dominador não
é um perseguidor que controla a vida inteira da submissa como um serial killer. Isso piora com a escolha
de Jamie Dornan em manter os olhos fixos o tempo inteiro quase sem piscar como
uma espécie de Hannibal Lecter sarado e apenas o torna ainda mais caricato. Os
diálogos são de constrangedores de ruins e parecem saídos diretamente desses
romances eróticos baratos vendidos em bancas de revistas, sendo que muitas vezes descambam para o humor involuntário.
Tudo
isso piora devido à química pobre entre os dois protagonistas, que parecem
estar sempre incomodados e desconfortáveis com a presença do outro. Até tentam
compensar nas cenas de sexo, mas recorrem a um exagero no qual cada mínimo
toque do amante produz sonoros gemidos e faz seus corpos se contorcerem
completamente de prazer, tal qual num pornô softcore
ruim, daqueles que passavam no extinto Cine
Privê da Band, mesmo as cenas com sadomasoquismo demasiadamente comportadas.
O sexo falha em gerar excitação, incômodo ou repulsa (ou até os três juntos) é
frígido, mecânico, passando longe da intensidade de filmes sobre romances
tórridos como 9 1/2 Semanas de Amor
(1986), inclusive há uma cena envolvendo gelo que parece copiada diretamente do
filme estrelado por Mickey Rourke.
A
trama se desenvolve de modo tão morno quanto suas cenas de sexo, falhando em
criar qualquer conflito ou tensão entre os protagonistas e isso ocorre apenas
nos minutos finais quando o filme encerra abruptamente para deixar o gancho
para os próximos. Entre uma cena de sexo e outra acontece pouco de interessante
além de diálogos expositivos sobre as práticas sadomasoquistas.
Mas
o pior do filme é mesmo o modo quase que preconceituoso com que o filme trata o
BDSM e o fetiche por dominação e submissão. Como já falei, o filme
constantemente tenta associar o fetiche de Grey a desvios de caráter, como esse
modo de expressar a sexualidade fosse apenas possível por pessoas que sofreram
grandes traumas (como Grey) ou são moralmente corrompidas (como a mulher que o
abusou). Tanto que o filme sempre contrapõe as preferências do personagem com a
palavra "normal" como em "sexo normal" ou "relação
normal".
Palavras
neutras como "tradicional", "comum" ou "ortodoxo"
poderiam ser utilizadas, mas ao optar pela contraposição com "normal"
o filme claramente sugere que há algo de anormal ou aberrante com o personagem
e que sua conduta é errada e antinatural. Nem preciso dizer o quanto essa
perspectiva é retrógrada, conservadora e preconceituosa, afinal cada indivíduo
possui sua maneira de expressar sua sexualidade e experimentar prazer e existem
tantas sexualidades quanto há seres humanos no mundo. Tratar o sexo sob esse
juízo de valor de que existem práticas mais ou menos corretas é completamente
equivocado, o que duas pessoas fazem de modo consensual e íntimo para sentir
prazer não cabe a ninguém julgar.
A
isso soma-se a ideia de que por causa de sua conduta sexual o personagem seja
incapaz de amar ou de ser romântico, como se seu fetiche automaticamente o
transformasse em um lascivo monstro insensível e sem empatia o que é uma
generalização infundada, o fato de alguém sentir prazer entre quatro paredes
com essas práticas de dominação nada tem a ver com a capacidade afetiva do
indivíduo. O fato do personagem ser aos poucos "curado" de sua
insensibilidade pelo amor de Anastasia, como se a prática do sexo
sadomasoquista pudesse ou precisasse ser "curada". Como se houvesse
um sexo "do bem" e outro "do mal" que precisasse ser
combatido e erradicado. Tanto que no final a protagonista parte, não apenas por não se sentir confortável com as práticas de Grey (o que seria compreensível), mas por julgar sua conduta sexual com vil (embora sua conduta fora do sexo seja), como se ela fosse moralmente superior por não aceitar esse tipo de coisa.
Além
disso apresenta uma visão equivocada da relação entre dominador e submissa como
se fosse algo unilateral, como se apenas o dominador sentisse prazer ou
escolhesse as atividades quando na verdade o submisso também age do modo que
age porque ele quer isso, porque ser submisso o excita e lhe dá prazer. Lidar
com esse tipo de relação deve ser uma constante troca e exige bastante
entendimento entre as partes na qual ambos buscam o prazer mútuo, nunca uma
relação de posse ou de prazer unilateral. Ao invés disso trata o BDSM como sinônimo de patologia e abuso da(o) parceira(o).
Felizmente
o cinema já produziu olhares muito mais honestos sobre a questão como Secretária (2002), estrelado por Maggie
Gyllenhaal (e curiosamente o dominador também se chama Sr. Grey), que consegue
ser mais erótico (usando menos nudez, diga-se de passagem) e mais chocante que
este filme. Além disso entende a
complexidade e as nuances desse tipo de prática, mostra como os praticantes
deste tipo de atividade podem ter um relacionamento afetivo como qualquer outro sem
abrir mão de seus fetiches.
Assim
sendo, Cinquenta Tons Cinza se revela
um romance erótico extremamente moroso e frígido, que se prejudica por não
parecer compreender verdadeiramente o universo que quer nos mostrar,
apresentando uma visão demasiadamente pudica e conservadora sobre a prática do
BDSM.
Nota:
2/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário