O
diretor sul-africano Neill Blomkamp chamou a atenção de todos com sua ótima
alegoria para o preconceito e segregação racial em Distrito 9 (2009), seu filme seguinte, Elysium (2013) dividiu opiniões, embora eu o considere
satisfatório. Este Chappie, no
entanto, representa um grande deslize do diretor já que não consegue funcionar
nem como um drama existencial nem como filme de ação.
A
trama se passa na África do Sul em um futuro próximo no qual a força policial
foi substituída por robôs. O criador desses robôs, o cientista Deon Wilson (Dev
Patel) está convencido que pode ser capaz de criar um autômato dotado de
livre-arbítrio, uma inteligência artificial genuína, capaz de aprender e pensar
por conta própria. Sua chefe, a executiva Bradley (Sigourney Weaver), não acha
a ideia viável e o engenheiro Vincent (Hugh Jackman com um mullet digno do MacGyver) vê o trabalho de Deon como uma ameaça ao
protótipo bélico que tenta aprovar. Ignorando as ordens dos superiores, Deon
cria o robô assim mesmo e tudo se complica quando ele é sequestrado e obrigado
a deixar sua criação com um grupo de bandidos que desejam usar Chappie (Sharlto
Copley) para cometer crimes.
O
filme vai acompanhar a evolução e o aprendizado do robô enquanto ele é
apresentado ao melhor e pior da humanidade. Assim, a obra tenta levantar
discussões sobre o que é que nos faz humanos, a natureza da consciência, se é
possível uma máquina ser como nós ou o perigo que isso representaria. Nada
disso é exatamente novo, filmes como Robocop
(1987) e seu remake de 2014, Blade Runner (1982), A.I: Inteligência Artificial (2001), O Homem Bicentenário (1999), Matrix (1999), O Exterminador do Futuro (1984) ou Eu, Robô (2004) já lidaram com isso. O problema nem é o filme
repetir tudo que já foi feito, mas por fazê-lo de modo tão leviano. São temas
complexos e difíceis nos quais certo, errado e verdade não são absolutas, mas o
texto trata tudo com um maniqueísmo rasteiro.
Deon
é mostrado como um sujeito bondoso e bem intencionado, no entanto ele cria uma
inteligência artificial irrestrita e não pensa em um segundo sequer o perigo
potencial que sua criação representa. Como o filme claramente se passa no nosso
mundo (como deixa clara a presença do âncora da CNN Anderson Cooper) é difícil
crer que ele jamais tenha chegado perto de qualquer obra de ficção que tenha
tratado disso ou tampouco passado por uma universidade sem que isso tenha sido
debatido. A impressão que fica é que ele não é tão certinho, bondoso ou ético
quanto o filme acha que ele é, mas ao invés de jogar com as contradições do
personagem e torná-lo um personagem mais complexo e interessante, o texto
prefere ignorar tudo isso e o trata apenas como um heroi virtuoso genérico. O
mesmo pode ser dito de seu rival, Vincent, que chega a levantar questões
importantes que emergem da existência de uma inteligência artificial deste
porte, no entanto o filme tem tanta pressa em transformá-lo em vilão que
rapidamente ignora seus argumentos e o reduz a uma caricatura.
Sim,
Vincent é um bruto fascista e mesquinho, mas ele levanta pontos fundamentais e
isso ajudaria a torná-lo um personagem mais complexo (ele tem certa razão
apesar de ser um babaca), engrandeceria o debate proposto, já que daria ao
público mais o que pensar. Ao invés disso, Blomkamp prefere simplesmente
desqualificar o personagem ao fazer dele um tipo de fanático que se opõe a
Chappie por razões religiosas: ele constantemente o chama de "criatura herege" e faz o sinal da
cruz por mais de uma vez. Ora, a crítica feita aos perigos da inteligência
artificial não é de modo algum um argumento de exclusividade religiosa,
tampouco é defendido apenas por pessoas com essa orientação ideológica. Na
verdade, boa parte dos filmes citados acima faz essa crítica sem sequer se
aproximar de um argumento religioso, associar a oposição do personagem apenas a
uma motivação religiosa é uma inverdade falaciosa. Em resumo, em sua tentativa
de debater consciência e humanidade o diretor simplesmente demoniza os pontos
de vista que se opõem aos que ele quer passar ao invés de confrontá-los com
ideias e argumentos sólidos e isso é algo intelectualmente covarde e desonesto,
um erro imperdoável para qualquer obra que se propõe a discutir qualquer tema.
A
vilanização de Vincent e Bradley é coerente com a filmografia do cineasta e
suas críticas às grandes corporações e às forças armadas, no entanto, o diretor
é tão certo de sua superioridade moral que automaticamente os transforma em
inimigos sem se dar o trabalho de levar seu raciocínio em consideração e isso
impede qualquer tipo de embate de ideias já que ele se considera
automaticamente certo. O problema não é que ele tenha ou defenda esse ponto de
vista, são críticas perfeitamente pertinentes, mas que ele o faça de uma
maneira maniqueísta que define heróis e vilões absolutos, reduzindo os
personagens a um amontoado de estereótipos rasteiros.
Além
disso a conduta de Vincent não faz o menor sentido, ele descobre que Deon pegou
propriedade corporativa sem autorização e realizou um experimento não
autorizado, tudo que ele precisava para derrubar o rival, bastariam duas
palavras para Bradley e não apenas Deon estaria acabado profissionalmente como
ele certamente receberia autorização para destruir Chappie. No entanto sua
atitude é realizar uma sabotagem catastrófica e potencialmente levar à falência
a empresa no qual trabalha e cuja verba precisa para desenvolver seu robô. Por
mais mesquinho e invejoso que seja, o personagem não é burro (ele cria um robô
bélico gigante de controle remoto mental no fim das contas), então não faz
sentido que ele arrisque prisão e o colapso da empresa se poderia conseguir
tudo que deseja de modo muito mais fácil.
O
final traz ainda mais ideias complexas em um filme já lotado delas ao tratar de
transcendência corporal e mapeamento da consciência resolvendo tudo de modo
muito fácil e muito rápido e mais uma vez tratando questões complicadas de modo
leviano. O filme irá atropelar sem sutilizas todos esses questionamentos e automaticamente
fornece uma resposta sem sequer considerar as consequências do que está
fazendo. De novo reitero que meu problema não é discordar do que é dito, mas o
fato do filme apresentar seus pontos de vista sem qualquer ponderação. Defender
que um procedimento científico deve ser realizado simplesmente porque possuímos
o conhecimento e tecnologia para fazê-lo é uma visão leviana e irresponsável do
trabalho científico. É uma questão muito delicada e aqui é apresentada através
de simplificações grosseiras.
Podemos
ignorar as pretensões filosóficas da obra e enxergá-la apenas como um filme de
ação, mas este ponto de vista não torna as coisas muito melhores. A fita
praticamente tem apenas duas sequências de ação: a batida policial do início e
o confronto final. São bem realizadas e tem a agilidade e violência gráfica que
estamos acostumados a ver nos filmes de Blomkamp, mas insuficientes para manter
a energia e empolgação que se espera de um filme de ação. Os efeitos especiais
são muito bem realizados e realmente acreditamos na existência daqueles robôs e
o feito é notável principalmente pelo baixo orçamento (cerca de 50 milhões)
enquanto que filmes com o dobro ou triplo de verba não conseguem ser tão
convincentes.
O
principal acerto, no entanto, é o personagem título. Além da já citada
qualidade dos efeitos visuais o trabalho de Sharlto Copley como o robô Chappie
consegue criar o único personagem interessante da produção e consegue acertar o
tom da sua inocência e ingenuidade tornando adorável algo que facilmente
poderia se tornar aborrecido. Começando quase como um bebê incapaz de se
comunicar e de se movimentar direito, ele começa a aprender imitando o
comportamento daqueles ao seu redor e repetindo seus gestos e falas, tal qual
uma criança. Copley consegue criar uma linguagem corporal que é ao mesmo tempo
robótica e humana e sua voz convoca muito bem as emoções do robô apesar dos
movimentos faciais limitados.
Assim
sendo, é uma pena que esse protagonista concebido de modo tão cuidadoso seja
usado em uma narrativa tão inconsistente, que trata problemas complexos de
maneira demasiadamente superficial e é povoada por personagens aborrecidamente
unidimensionais.
Nota:
3/10
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