segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Crítica - Beasts of No Nation


 
Vou ser direto, Beasts of No Nation, longa-metragem original do Netflix, é um filme desagradável. Não que seja um filme ruim, longe disso, mas ele trata de algumas verdades brutais sobre nosso mundo e sobre eventos que, apesar de encenados, reproduzem com incômodo realismo a trajetória tacanha das crianças soldado em nações africanas. Não é algo fácil de digerir, não é agradável acompanhar essa história de violência e desesperança, mas não havia outro modo de falar a respeito disso senão por o dedo na ferida e fazê-la sangrar, se o filme não nos incomodasse, se não nos tirasse de nossa zona de conforto, não estaria fazendo direito o seu trabalho e se nada nesse filme de incomodar, te chocar ou te deixar agoniado, diria que você tem sérios problemas de empatia e deve procurar rápido um profissional de saúde mental.

Baseado no romance homônimo de Uzodinma Iweala, a narrativa acompanha Agu (Abraham Attah), um garoto que vê sua vila ser invadida depois que uma guerra civil explode em seu país. Quando todos ao seu redor são mortos, Agu foge da vila, mas é encontrado por um comando da facção rival e seu Comandante (Idris Elba) o obriga a se tornar um soldado. A partir daí acompanhamos como essa criança vai aos poucos sendo transformada em um sanguinário soldado.

Idris Elba é uma presença poderosa e comanda seu esquadrão com um fervor quase que religioso e sua fala intensa carregada de bravatas sobre justiça torna fácil convencer uma criança que acabou de perder tudo, tomada por medo e raiva, a tomar parte nessa luta armada. Ele ainda os faz crer que as rezas e rituais aos quais os submete os tornou invencíveis, como fica claro na cena em que pede aos soldados para atirarem nos garotos com balas de festim sem que eles saibam, assim quando se dão conta de que os tiros nãos os mataram, imediatamente diz aos garotos que ele os tornou invencíveis.

O garoto Abraham Attah consegue transmitir bem o tormento mental de um garoto roubado de sua infância que comete atos de extrema violência, como o momento em que ele atira sem dó em uma mulher depois de confundi-la com a mãe, mas que ainda assim é essencialmente uma criança como fica claro na cena em que ele entra numa casa e se encanta ao ver uma televisão. O trabalho do garoto em transmitir que por nos deixar ver aqui e ali que por trás da loucura e violência ainda existe uma criança e por isso, o vemos tanto quanto algoz, já que é impossível negar a gravidade de seus atos de violência, e também como vítima, pois, afinal, que escolha ele teve? Ele foi jogado nesse meio de violência contra sua vontade e foi praticamente submetido a uma lavagem cerebral pelo Comandante.

O roteirista e diretor Cary Fukunaga (responsável pela primeira temporada de True Detective) conduz essa jornada sem nos poupar do cotidiano brutal enfrentado pelas crianças soldado. Um caminho no qual não há catarse ou mesmo redenção plena, já que uma vez removido o véu da inocência é impossível colocá-lo de volta plenamente, algo que fica claro na cena que encerra o longa, com Agu observando outras crianças brincando na praia, hesitando antes de correr para se juntar a elas, quase como se questionasse se realmente pertencesse ou merecesse estar naquele grupo.

As cenas de guerra são filmadas por Fukunaga como um tóxico delírio febril. Apesar de não economizar no realismo da violência cometida, sua câmera capta esse universo com um olhar quase que surreal. Vemos isso na lisérgica sequência que Agu vai para a batalha sob efeito de drogas pela primeira vez ou o momento em que ele conversa com o Comandante em meio a uma cidade em ruínas tomada pela névoa e a paisagem parece algo saído diretamente de um pesadelo. O único deslize fica por conta do excesso de exposição próximo ao fim, em especial na cena em que Agu conversa com um professor e é enquadrado como se falasse diretamente para nós. Seu diálogo, bem como o modo como tudo é filmado, parece um vídeo publicitário ou educativo de alguma ONG e destoa de toda a construção feita até então pelo filme, soando artificial e redundante.

Beasts of No Nation é um conto brutal sobre violência, guerra e perda da inocência, que nos arrebata e incomoda em igual medida ao nos lembrar que nada nem ninguém sai incólume ao ser submetido a tamanha selvageria, revelando como as marcas disso tudo ecoam por gerações.

Nota: 8/10

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