Ultimamente
Hollywood tem se esforçado para transformar praticamente qualquer coisa em
franquia cinematográfica, criar um grande universo que possa ser explorado e
construído ao longo de vários filmes e produtos derivados, criando marcas que
se tornem garantias de retorno financeiro. O problema, como apontei em meu
texto sobre Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros, é que nem todo material se presta a dar origem a um universo
expansível ou ofereça base para que tome ampla liberdade com seus personagens
sem que eles percam a essência que os torna tão interessantes.
Filmes
como Malévola (2014) ou Hannibal: A Origem do Mal (2007), já
mostraram que tentar retornar à origem de personagens muito icônicos muitas
vezes acaba enfraquecendo esses personagens (como na origem de Hannibal Lecter)
ou lhes retira suas características fundamentais ao ponto de não sermos mais
capazes de ver ali aquele personagem que tanto adorávamos (como em Malévola) e o que resta é apenas alguém
com o mesmo nome e muito parecido com ele em uma narrativa genérica que podia
ser feita em qualquer universo com qualquer personagem. Este Peter Pan lamentavelmente cai na segunda
categoria.
A
história original era um conto sobre amadurecimento, sobre perceber que a
infância não dura para sempre e que por mais que seja ótimo ser criança,
brincar e se divertir sem se preocupar com nada, se manter assim também nos
priva de muita outras experiências e, no entanto, para crescer não é
verdadeiramente necessário esquecer tudo sobre a infância e se tornar um adulto
rígido e amargo incapaz de rir, de se divertir e que apenas espera o tempo lhe
alcançar. A história escrita por J. M. Barrie obrigava a jovem Wendy (que
supomos estar entrando na adolescência) a se defrontar com isso através das
figuras de Peter Pan, que representava a infância alegre e livre, e Capitão
Gancho, o adulto amargo com medo do tempo (simbolizado pelo Crocodilo). Os
dois, portanto, não são sujeitos plenamente realizados, são metáforas, são
arquétipos, e exigir que esses personagens sejam algo que não são é querer
roubá-los de suas essências.
Não
estou dizendo que o material original é um cânone imutável, o propósito de uma
adaptação é justamente trazer um novo olhar à uma narrativa conhecida. Para que
isso funcione é preciso pelo menos compreender quem são esses personagens e
qual é o mundo em habitam, para saber qual o "espaço de manobra" que
o material oferece e assim ser capaz de expandir aquilo que se conhece sobre
essa narrativa sem, no entanto, tirar dela suas ideias e temas fundamentais. Um
bom exemplo disso é Hook: A Volta do
Capitão Gancho (1991), um filme que expande a narrativa de Peter Pan sem
abandonar os conceitos e subtexto que tornam este universo singular. O mesmo pode ser dito do recente O Pequeno Príncipe que conta uma história um pouco diferente do livro, mas mantém as mesmas ideias do material original.
Voltando
ao filme, este "Peter Pan Begins" por algum motivo se passa no
período da Segunda Guerra Mundial (ao invés do início do século XX), mas a
mudança de época serve a pouco ou nenhum propósito além de permitir a
descartável cena de perseguição envolvendo o navio do Barba Negra (Hugh
Jackman) e alguns aviões de guerra, tudo abusando de uma computação gráfica
pouco convincente e sem muita energia ou empolgação e assim o pano de fundo
histórico é desperdiçado por completo. O órfão Peter (Levi Miller) é
sequestrado do orfanato que habita em Londres pelo pirata Barba Negra e levado
para a Terra do Nunca, onde o pirata vem sequestrando crianças há séculos para
que minerarem cristais de pó mágico das fadas (que eles chamam de Pixum) do
solo para que o pirata consiga rejuvenescer, a mineração é o único meio de
adquirir este recurso, já que Barba Negra extinguiu as fadas. Chegando lá,
Peter descobre que há uma profecia de que um garoto filho de uma humana com o
príncipe das fadas (um fado?) apareceria para derrotar o pirata e trazer as
fadas de volta para a Terra do Nunca. Para alcançar seu destino, Peter
precisará da ajuda do jovem pirata James Gancho (Garrett Hedlund e sim, Gancho
é aparentemente seu sobrenome e não um apelido) e da princesa indígena Tigrinha
(Rooney Mara).
Sim,
esta é mais uma fantasia infanto-juvenil na qual um jovem é levado a um mundo
mágico e descobre ser "o escolhido" para salvar o mundo da opressão
de um vilão maligno, uma estrutura pra lá de batida e que é usada pela imensa
maioria das narrativas deste tipo. Assim, tudo que tinha de único neste universo
e nesses personagens é jogado fora para ser substituído pela repetitiva jornada
"do escolhido", na qual ele irá inicialmente rejeitar o rótulo, sendo
auxiliado pelos coadjuvantes até a quase derrota quando ele finalmente passa a
acreditar em si, assume seu papel de salvador e resolve tudo. Peter Pan, portanto, acaba cometendo o
mesmo erro do terrível Alice no País das
Maravilhas (2010) ao transformar o seu universo em uma Nárnia genérica que
mantêm apenas o nome dos personagens. Além disso ainda recicla parte da trama
de Hook: A Volta do Capitão Gancho,
na qual Peter recebe um prazo de três dias para provar que consegue voar.
O
diretor Joe Wright, de ótimos filmes como Orgulho
e Preconceito (2005), Desejo e
Reparação (2007) e do subestimado Hanna
(2011), exibe aqui o mesmo apuro visual na concepção de seu universo e dos
figurinos dos personagens, conferindo um tom bastante insólito e fantástico à
Terra do Nunca. O problema é que os efeitos visuais não acompanham a
criatividade do cineasta e muitas vezes deixam claro que estamos vendo um bando
de atores trabalhando diante de um fundo verde e algumas criaturas, como os
Pássaros do Nunca, são terrivelmente artificiais. Filmes recentes como Perdido em Marte ou A Travessia fizeram um uso muito mais convincente de cenários
digitais e da exibição em 3D. Ainda assim, o filme exibe algumas boas ideias
como a de usar como "canção de pirata" alguns sucessos do rock como Smells Like Teen Spirit do Nirvana (embora o arranjo seja
incomodamente muito similar ao de uma cena de Moulin Rouge) ou Blitzkrieg
Bop dos Ramones, denotando a natureza impetuosa, energética e juvenil dos Garotos
Perdidos.
Hugh
Jackman é quem se sai melhor ao conceber um Barba Negra grandiloquente,
carismático e impiedoso, cuja presença sempre emana um ar ameaçador. O garoto
Levi Miller é correto, mas jamais consegue se libertar dos clichês que o
roteiro lhe prende. Já o habitualmente carismático Garrett Hedlund é mais uma
vez desperdiçado (algo que apontei ao falar do fraco Invencível), já que ele nunca tem a chance de interpretar o
personagem que foi contratado para fazer e ao invés disso se limita a uma
imitação derivativa de Han Solo com tiradas sarcásticas e até abandona os
personagens em determinado momento, alegando a aquela batalha não é sua, apenas
para retornar para salvar todos quando as coisas se complicam na batalha final,
tal qual Solo faz em Star Wars: Uma Nova
Esperança (1977).
Eu
sei que esse ainda não é o Gancho que conhecemos, mas não apenas não há nada
que o lembre, como não há qualquer indicação de como ele ficou daquele jeito.
Eu não gosto de dar spoiler, mas
preciso mencionar que ao contrário do que o material promocional e até mesmo a
narração em voz over que abre o filme
dão a entender, nunca vemos a gênese da rivalidade entre Peter e Gancho (como X-Men Primeira Classe faz muito bem, por
exemplo), nunca vemos como Gancho se tornou tão amargo. Ele até aparece usando
um gancho como ferramenta nas suas duas primeiras cenas, uma para afiar sua
picareta e outra para abrir um buraco entre a cela dele e de Peter, mas depois
o gancho, que deveria ser "a marca" do personagem é totalmente
esquecido. Claro, vemos Peter se tornar "o" Peter Pan, mas Gancho
nunca é desenvolvido e eles ainda são amigos quando o filme termina e isso é um
enorme desperdício de potencial. Explorar a formação da inimizade entre eles
era basicamente a única coisa do filme que podia acrescentar algo a este
universo, mas isso nunca acontece, sendo empurrado com a barriga para uma
possível continuação, a mesma estratégia picareta utilizada por Ridley Scott em
Prometheus (2012) que também nunca
responde as questões que ele próprio se propõe a tratar.
Completando
o elenco, Rooney Mara interpreta a indígena mais branca da história do cinema,
numa escolha de casting que
simplesmente não faz o menor sentido. Eu sei que é um mundo de fantasia, que os
índios da Terra do Nunca não são os mesmos do mundo real e isso seria uma
justificativa aceitável se todos fossem brancos, no entanto, apesar de
aparentemente serem multiétnicos, Mara é a única branca de toda a tribo. Indo
além da questão étnica, a personagem não tem muito o que fazer além de explicar
detalhes da trama para Peter e Gancho, embora eu deva elogiar o fato dela
jamais ser reduzida a uma mera donzela em perigo e ser perfeitamente capaz de
cuidar de si mesma.
As
cenas de ação carecem de energia ou intensidade e, como já foi dito, muitas
vezes são prejudicadas pela qualidade dos efeitos especiais. O confronto final
com o vilão Barba Negra se alonga mais do que deveria e acaba cansando, para
piorar ele ainda é despachado muito rápido e sem muito esforço por Peter (numa
espécie de Kamehameha de fadas), tornando o embate relativamente decepcionante
e anticlimático. Preciso também comentar a falta de nexo no plano do vilão, se
ele queria o pó das fadas não seria melhor mantê-las em cativeiro para coletar
indefinidamente seu pó mágico ao invés de matar todas elas e depois ter que
escavar o solo para conseguir Pixum? Se o filme explicasse que o recurso só
pode ser coletado de uma fada morta (o que não acontece no material original,
mas seria aceitável aqui) o plano faria sentido, mas do jeito que está soa
incoerente. Aliás, nunca é dito que o pó das fadas é capaz de fazer voar, então como os navios do Barba Negra voam? É o tipo de pergunta que pode parecer bobagem, mas demonstra o pouco cuidado que se teve em estabelecer a coesão interna do universo proposto.
Deste
modo, Peter Pan estripa toda alma e
coração do material original, substituindo-os por uma trama genérica,
personagens pouco interessantes e cenas de ação que nem sempre empolgam. Seu
universo fantástico e colorido certamente irá agradar as crianças, mas os
adultos não devem criar muitas expectativas. Se a ideia é ver uma boa história
na Terra do Nunca o Peter Pan (2003)
dirigido por P.J. Hogan é uma escolha melhor.
Nota:
4/10
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