Quando
falei sobre Evereste mencionei que
uma das coisas que me incomodou no filme era que ele parecia se esforçar pouco
para nos fazer compreender o que movia aqueles personagens a tentar tal façanha
e isso prejudicava nosso engajamento com eles. Este A Travessia felizmente não padece do mesmo mal e ao longo das duas
horas de projeção conseguimos claramente entender as razões para o equilibrista
Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt) ficar fascinado em realizar seu número
entre as torres do World Trade Center. Claro, é uma construção mais pautada em
níveis emotivos e sensoriais, mas, sejamos sinceros, explicar em termos lógicos
de modo convincente porque alguém quereria se pendurar em uma corda bamba no
alto de um arranha-céu seria uma tarefa bastante ingrata.
Baseado
na autobiografia de Petit (que também inspirou o documentário vencedor do Oscar
Man on Wire), o filme conta seus
primeiros dias como artista de rua até o momento em que fez sua histórica
performance no World Trade Center. É uma tradicional história de superação, da
luta de um homem para superar os obstáculos em busca de um sonho, algo que o
diretor Robert Zemeckis já fez muito bem em Forrest
Gump (1994), mas também tem elementos de um filme de roubo (ou heist movie) com os personagens
montando a equipe para o "golpe", a invasão às torres para armar os
cabos, planejando, e então lidando com
os imprevistos que aparecem.
Apesar
da estrutura tradicional, o filme nos cativa graças à direção elegante de
Zemeckis e ao trabalho de Gordon-Levitt. O ator consegue captar bem o enorme
carisma de Petit, um sujeito tão sincero em suas intenções que conquista a
simpatia de todos com quem convive e é justamente essa veracidade que Levitt
transmite do deslumbramento do artista com as torres gêmeas que nos faz aderir
a sua jornada, mesmo que ela nos soe como louca ou desnecessariamente perigosa.
Seu sotaque francês derrapa em alguns excessos aqui e ali, mas nada que
realmente prejudique a imersão. O que incomoda, no entanto, é o tratamento
superficial dado a relação dele com a namorada, Annie (Charlotte Le Bon), que o
filme encerra de modo abrupto, praticamente já no epílogo, sem dar muitas
razões para tais acontecimentos e sem sequer criar qualquer tensão ou conflito
entre eles e teria sido melhor nem mencionar o que aconteceu.
Já Zemeckis é bastante hábil em sua reconstrução
digital do World Trade Center que se ergue aos céus reluzente, esplendoroso e
imponente e com um nível de detalhamento impressionante. As torres são tão
protagonistas do filme quanto Petit e a recriação digital feita pelo filme é
precisa em despertar em nós o mesmo encantamento que faz com o protagonista do
filme. Além do bom uso de efeitos digitais, o filme também traz uma rara boa
utilização do 3D que nos dá a vertiginosa profundidade da altura em que o
personagem se encontra, bem como a pequenez de sua figura e da corda que o
sustenta. Na primeira vez que Petit sobe ao terraço do prédio e se defronta com
a imensidão a cidade ao seu redor ao se equilibrar em uma viga, entendemos o
sentimento misto de liberdade e adrenalina experimentado pelo personagem.
A sua performance, aliás, serve praticamente de
metáfora para a arte como um todo ao nos fazer pensar até que ponto um artista
deve se arriscar pelo seu ofício ou qual seria exatamente o valor ou potência
deste ato para aqueles que o veem e também para quem faz. As imagens criadas
por Zemeckis para a travessia tem um aspecto quase onírico, como quando
sonhamos que estamos voando por entre os prédios da cidade e Petit nos lembra
de como a arte nos faz transcender a nós mesmos, nos faz crer que homem pode
ser mais do que aquilo que é, que através dela fazemos as pessoas crerem no
extraordinário, que as elevamos para além do banal. Assim como a arte, a
apresentação de Petit pode despertar reações variadas como deslumbramento ou
medo, mas independente de como se reaja a ela, não há como negar a força que
ela traz em si.
É curioso, inclusive, que no momento da travessia
Petit perde seu uniforme, fazendo seu número com as roupas normais,
praticamente como se estivesse se apresentando "de cara limpa", sem
seu uniforme, sem sua persona de
palco. Petit atravessa a corda bamba não como artista, mas como pessoa, ele não
faz o que faz apenas pela notoriedade ou para o divertimento das pessoas, ele
faz para si mesmo, pela sensação que seu próprio ofício lhe traz. Nesses
momentos vemos novamente o cuidado e sutileza das composições de Zemeckis, como
quando ele nos dá um breve plano-detalhe com a mancha de sangue sob a sapatilha
de Petit, revelando com clareza e discrição o custo físico da façanha sobre o
personagem, o que amplia a dimensão do seu feito ao mesmo tempo que evita
apelar para exageros.
A Travessia, portanto, é mais do que apenas a reconstituição de
uma proeza histórica, é um testamento do poder inspirador e transgressor da
arte e de como isto move o artista a fazer o inimaginável.
Nota: 8/10
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