A primeira temporada de Demolidor se saiu muito bem em nos apresentar ao lado mais "urbano" dos super-heróis da Marvel, trazendo uma abordagem mais sombria e violenta ao universo audiovisual concebido pela editora. Este Jessica Jones, segunda série de um projeto conjunto entre a Marvel e o Netflix, continua a construir de modo competente esse ambiente mais maduro dos heróis urbanos. Vou tentar evitar o máximo de spoilers aqui, mas possivelmente irei entregar algumas pequenas informações, então se deseja assistir sabendo o mínimo possível de antemão, melhor retornar aqui depois de ter visto os treze episódios.
A
trama desta primeira temporada é baseada na minissérie Alias escrita por Brian Michael Bendis e acompanha Jessica Jones
(Krysten Ritter), que se tornou detetive particular depois de uma breve
tentativa de usar sua superforça para ser uma super-heroína. Traumatizada
depois de ter sua mente controlada pelo misterioso Kilgrave (David Tennant),
que a obrigou a fazer coisas terríveis e abusou dela física e mentalmente,
Jessica tenta reconstruir sua vida, mas as marcas deixadas pelo vilão não
permitem que ela leve uma vida tranquila. A situação se agrava quando ela
recebe um caso envolvendo uma estudante desaparecida que a faz pensar que
Kilgrave talvez esteja mais perto do que pensa.
Krysten
Ritter acerta na personalidade sorumbática de Jessica que exibe um constante
ódio de si mesma, não apenas por causa do que Kilgrave lhe fez, mas também por
se julgar responsável por um acidente ocorrido em sua infância, levando-a a uma
vida de autopunição regada a álcool e subempregos que nunca exploraram seu
potencial. A composição da atriz nos faz perceber essas fragilidades que ela
tenta esconder sob uma fachada durona, desbocada e furiosa, que serve como um
mecanismo de defesa para manter as pessoas afastadas, no entanto, percebemos
que há uma certa dose de bondade nela apesar de seu aparente desprezo pelas
pessoas. Ao longo dos treze episódios, a série concebe uma heroina bastante
complexa, cheia de contradições e emoções conflitantes, que tem lidar com os
próprios medos, agindo a despeito deles, e também com peso de seus erros. É exatamente
por sermos capazes de perceber a luta constante dela com as escolhas difíceis
que constantemente tem de tomar que aderimos tanto a sua jornada.
Ao
seu lado ela tem sua irmã de criação, Patricia "Trish" Walker
(Rachael Taylor), que os fãs de quadrinhos devem reconhecer como identidade da
heroína Hellcat. Aqui ela ainda não desenvolveu sua persona heroica e é uma pessoa tão cheia de traumas quanto a
própria Jessica, vivendo em um apartamento cheio de sistemas de segurança e
treinando obsessivamente artes marciais. Além
de Trish, o caminho de Jessica cruza com o misterioso Luke Cage (Mike Colter, o
Bishop da série The Good Wife), que
talvez seja a única pessoa que consiga entender a sensação de ser diferente
experimentada pela protagonista. Assim como ela, Cage parece querer levar uma
vida discreta, tanto que sentimos uma ponta de tristeza em sua fala quando ele
diz a ela "você não pode me
consertar, eu sou inquebrável", ao mesmo tempo reconhecendo seu poder
e admitindo feridas emocionais tão profundas que ele não sabe como resolver. A
relação entre eles é bastante difícil devido à quantidade de bagagem emocional
de ambos, mas é possível compreender perfeitamente o que veem um no outro, bem
como cada uma das idas e vindas entre eles, que jamais soam gratuitas.
O
vilão Kilgrave só aparece fisicamente por volta do terceiro episódio, mas mesmo
antes de vê-lo ele já é uma presença arrepiante graças aos constantes sussurros
que Jessica ouve em sua cabeça como um lembrete constante dos abusos que
sofreu. Seu poder de controle mental lhe confere uma imprevisibilidade que
aumenta a tensão e a paranoia por não sabermos quem ele pode estar controlando
e usando para atormentar os personagens.
O
olhar intenso de David Tennant deixa clara a instabilidade mental do sujeito
que é fundamentalmente uma criança mimada e imatura, já que graças ao seu poder
sempre teve tudo que queria a todo momento e por isso se torna obcecado por
Jessica, a única pessoa que não lhe deu tudo que desejava. Ele, no entanto, não
é apenas um sádico genérico e a trama nos dá razões para compreender como ele
se tornou assim, obviamente não torna aceitáveis suas ações, mas evita que tudo
descambe para uma caricatura rasa. Não chega a ter a complexidade do Wilson
Fisk de Demolidor, mas ainda assim
sua vilania é muito bem construída. Há um vilão menor da Marvel que também aparece
ao longo da temporada, mas vou evitar revelar muito e os fãs certamente saberão
quem é mesmo que ele não use seu codinome dos quadrinhos.
Já
que falei em Demolidor, devo dizer
que é um pouco estranho que os personagens a todo momento se refiram à invasão
de Nova Iorque no primeiro Os Vingadores (2012), um evento que ocorreu
anos atrás, mas em nenhum momento falem da brutal guerra de gangues que
explodiu dezenas de prédios e aconteceu na mesma vizinhança apenas alguns meses
atrás em Demolidor ou tampouco
mencionem o próprio vigilante apesar dele ter tido tanta evidência nos jornais
da cidade. Tudo bem que um personagem da série do Homem Sem Medo aparece aqui
em dado momento e até o menciona diretamente, no entanto é bem esquisito que
todos lembrem de algo catastrófico que ocorreu a anos e esqueçam da catástrofe
recente que ocorreu no região que moram, uma vez que o material de divulgação
faz questão de apontar que também se passa em Hell's Kitchen.
Assim
como em Demolidor, a cidade é
mostrada como um lugar sombrio, habitado por vários tipos escusos e com os
quais a população comum constantemente enfrenta dificuldades, mostrando como
esses heróis "das ruas" ajudam mais diretamente na vida dessas
pessoas, embora sejam também mais impactados por seus problemas. Nesse A
violência e o sangue também são bastante presentes e a série não economiza nas
consequências brutais dos atos sádicos do vilão. Jessica Jones consegue inclusive exibir um ritmo mais consistente
do que Demolidor, que ocasionalmente
perdia o um pouco do fôlego, trabalhando numa tensão crescente conforme
Kilgrave continua a escapar de Jessica. Existem, no entanto, algumas inconsistências
no modo como a trama lida com as habilidades dos personagens, em especial Cage,
que em um momento sai ileso depois que um prédio explode com ele dentro (e bem
próximo da explosão), mas é nocauteado e corre risco de vida depois de ser
atingido por um tiro na cabeça a queima roupa.
A
trama lida com temas como abuso doméstico (em diferentes níveis e situações),
aborto e superação de traumas, tudo tratado com bastante cuidado, evitando
recorrer a construções ou argumentos simplórios. Há inclusive um momento
bastante intenso no qual uma personagem relata com a pavor o sentimento de
saber estar grávida de seu estuprador e pede para encerrar a gestação. O único
arco que verdadeiramente não funciona é todo o drama envolvendo o divórcio da
advogada Jeryn Hograth (Carrie Anne Moss), que durante vários episódios aparece
bastante desconectado da trama principal e quando finalmente vai de encontro a
ela, parece que foi muito tempo gasto a troco de pouca coisa, já que a própria
personalidade fria e inescrupulosa da personagem seria suficiente para
justificar suas ações, sem precisar ter desenvolvido essa trama paralela por
tantos episódios.
De
todo modo, Jessica Jones é
extremamente bem sucedida em nos apresentar a uma protagonista complexa e uma
trama madura, repleta de tensão, boas cenas de ação e personagens
interessantes. Depois de devorar os treze episódios sem sentir o tempo passar a
série nos faz perguntar: "já acabou, Jessica?" Enquanto aguardamos ansiosamente
pela próxima empreitada da Marvel e Netflix.
Nota:
8/10
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